Isso aconteceu agora de manhã, perto da padaria onde eu tinha ido comprar pão, ovo e umas Heineken. São Judas Tadeu vinha apressado pela rua, parecia que estava atrasado pra algum compromisso, não percebeu quando de um edifício saiu, também apressado, um desses pós-marxistas de gola rolê. O choque foi inevitável, os dois barbudos foram ao chão. São Judas se apoiou na alabarda pra ficar de pé e ainda deu a mão pro outro cara se levantar. Se desculparam e se apresentaram.

– Oi, eu sou São Judas Tadeu, padroeiro do Mengão e primo de Jesus, foi mal aí. Machucou?

– Tranquilo, tô na boa. Eu sou Žižek, filósofo, professor e conterrâneo do Pet.

– Ah, você é sérvio também?

– Na verdade sou esloveno, mas quando eu e o Pet nascemos era tudo Iugoslávia.

– Saquei. Eu nasci na Galiléia, que na época era uma província romana e hoje é Israel. É uma zona, né?

– Mas você é primo mesmo do Jesus?

– Meu primo, pô. Meu pai era irmão do pai dele e minha mãe, irmã da mãe dele.

– Agora tu me confundiu, o Míster não é português?

– Que Míster, rapá?! Eu tenho cara de primo de traíra? Jesus meu primo é o filho do Cara. Ele não dá essas mancada, não.

– Ah, tá. Confundi os Jesus tudo. Mas onde você tava indo assim voado?

– Rumo a Tóquio, né, amigo? Tu não viu que o Mengão jogou ontem?

– Claro que vi, mas na moral, pressa de ir pra Tóquio depois daquele jogo? O Mengão me pareceu doido pra entregar as cocada.

– Tá de bobeira, Flamengo ontem foi gigante. Fez tudo que podia pra perder o jogo e ainda assim saiu de Avellaneda com um empate e com um gol marcado fora. Agora tá mole, 0x0 no Maraca é nosso.

– Agora tu viajou, meu patrão. Como que esse time aí vai ficar 90 minuto sem levar gol? Essa defesa é uma causa perdida. Reparou que o melhor momento defensivo do time foi quando o zagueiro foi expulso?

– Meu camarada, causa perdida é nóis. Na minha igreja eu sou O Advogado das Causas Perdidas.

– Aí empatou, meu consagrado, porque eu sou O Defensor das Causas Perdidas. É o nome do meu último livro.

– Então diz aí uma causa perdida que tu defende pra gente desempatar.

– Eu defendo o marxismo-leninismo pra provocar as esquerdas urbanas a saírem da sombra do que eu chamo “confortável posição de resistência” em que se entocaram, enchendo o saco de geral com o politicamente correto e se recusando a lidar com as questões reais da sociedade só pra continuar vendendo a utopia da sociedade ideal.

– Mas por que você defende isso?

– Porque é preciso recuperar a radicalidade dos movimentos revolucionários socialistas do século passado. Hoje o capitalismo é o único horizonte possível, a cidadania e o liberalismo econômico são tidos como as únicas alternativas necessárias do bom-senso e da responsabilidade.

– E não são?

– Judas, a sociedade capitalista, essa palhaçada liberal e democrática, é reprodutora das estruturas da exploração do presente. Ela tá chupando o nosso sangue. Nunca vai dar chance pros caídos se levantarem.

– É, tua causa perdida é perdidona mesmo. Mas a minha é mais.

– Qual é a sua causa perdida?

– Minha causa perdida é o Renê. Resolvi que vou defender o nosso latera porque a galera aceita qualquer vacilo dos fodões do time, mas pegam o tempo todo no pé do cara que foi o melhor lateral esquerdo de 2018.

– Aí é foda, porque o Renê é pereba.

– E daí que ele é pereba? Ele é o nosso pereba e quando os popstar tão dodói é ele que tem que segurar o pagode. Ontem o Isla sentiu sei lá o quê no aquecimento e aí? Entra quem?

– Matheuzinho, né?

– Que mané Matheuzinho, vai botar um moleque novinho num jogo de mata-mata? Não, tem que preservar os cria. Quem é que vai se foder todo jogando do lado errado? Renêzão da massa. Como é que não vou defender um cabra desses?

– É contra esse conformismo, essa acomodação bovina às circunstâncias que a sociedade tem que se rebelar pra poder alcançar outro estágio. Construindo caminhos políticos revolucionários concretos. Temos que abandonar as lutas que se pautam dentro do possível. O impossível é a única forma de superação do presente.

– O problema do Flamengo não é o presente. É a sombra do passado recente que tá deixando os cara perdidos. A galera ainda não saiu da fase de negação, não percebe que quando Jesus foi embora acabou o Flamengo de Jesus. Tem que fazer outro, diferente. Já perdemos 90 dias com o Dome com nego querendo ver a reprise de 2019. E ainda tem muita gente que não caiu essa ficha. O Flamengo agora tem que ser outro. Desapegar de Jesus e partir pra outra.

– Mas o Ceni é retranqueiro, a gente quer ver o Flamengo voando, daquele jeito doido e revolucionário.

– Taí, essa é uma causa perdida, porque aquele Flamengo já era. Quem viu, viu e quem não viu deu mole porque não se repetirá. O que não significa que o Flamengo não possa revolucionar de novo. Ser TRI da Liberta.

– No Flamengo de hoje é mais fácil ser TRI da Libertadores do que germinar a revolução. É quase impossível ser revolucionário quando se é a corporificação do establishment, quando se representa o sistema. Quando o Flamengo teve a chance de dar um passo adiante andou pra trás, apostou no atraso nacional e contribuiu pra fortalecer uma representação bizarra de governo que é contrária em tudo ao espírito rubro-negro.

– Você tá falando de espírito no sentido metafísico do termo, como consciência e personalidade? Ou na acepção psicológica, designando a atitude mental dominante de um grupo?

– Não, falei espírito no sentido espiritual mesmo. A essência incorpórea do Flamengo, seus valores intangíveis, tradições não escritas, ancestralidades difusas, ectoplasmas, fantasmas, almas, erês e padroeiros.

– É… uma bela causa perdida. Porque esse espírito, essa essência, ela pode ser incorpórea, mas não está separada do corpo físico. Na arquibancada, com todo mundo aglomerado, cantando a mesma música, olhando pro mesmo lugar ao mesmo tempo, querendo a mesma coisa, o espírito baixa, meu irmão.

– Claro, mas com as arquibancada vazia a voz que mais ouvimos é aquela dentro das nossas cabeças. E nessa não se pode confiar.

– Então me diz, Žižek, o que é que só você ouviu? O que diz a voz dentro da sua cabeça?

– A voz me diz que essa é a Libertadores mais mole da história. Que depois da semana inteira de treino que vai rolar agora o Mengão vai pegar no tranco, estrondar com o Racing no Maraca e que depois de passar pras quartas de final vai ser só lazer.

– É isso aí, Žižek. Esse que é o espírito rubro-negro. O bagulho tá no ar e o universo conspira. Valeu aí e se cuida, radicalzão. Olha por onde anda. Partiu Tóquio.

– Valeu, São Judas. Partiu Revolução! Não vai perder a cabeça.

Os barbudos se despediram e cada um foi pra um lado defender suas causas perdidas. Eu fui pro supermercado defender a minha. Na padaria a Heineken tava muto cara.

Mengão Sempre