Nada como a atmosfera das intermináveis horas que antecedem os grandes jogos para fazer aflorar os sentimentos mais íntimos e verdadeiros dos torcedores. Quando tudo é tensão e inquietude o emocional assume o controle sobre as ações dos indivíduos, moldando o comportamento coletivo das massas fanatizadas. Nos silêncios que precedem o esporro não há como esconder ou disfarçar o que vai por dentro do peito de cada um. É quando o verdadeiro espirito das torcidas se revela.
Por isso mesmo não há nada de fora do comum no fato dos colorados já estarem preparando, com reprovável demagogia, o terreno para uma provável desclassificação da competição continental. Para emplacar a pueril narrativa da arrogância rubro-negra, uma espécie de descoberta tardia da pólvora, nem era preciso forçar a barra com a exibição de vídeos extemporâneos retirados de seu contexto original. Somos arrogantes mesmo.
Mas deixemos algo bem claro, o time do Flamengo é humilde, humilíssimo. É a nossa torcida que é arrogante. Mas a arrogância da torcida do Flamengo não é motivo de vergonha ou censura. Porque é uma arrogância pura, construtiva e fiel às origens etimológicas do termo, que vem do Latim arrogantia, de ad, “a, para”, mais rogare, “pedir, propor” formando a noção de “exigir para si mesmo”.
Ora, meus amigos, existe no universo do futebol torcida com mais direitos que a do Flamengo de exigir para si mesmo as glórias e as conquistas das quais abriu mão, com notável desprendimento e senso de dever cívico? Quem se martirizou mais do que nós no jejum compulsório dos despossuídos ou roendo o osso insípido da retidão fiscal durante longos anos? Somos arrogantes, sim, mas para exercer essa arrogância nos entregamos ao sacrifício em nome de um bem maior, coletivo e universalizado que beneficiou a todo o país e até mesmo às nações amigas, como o Uruguai do Norte que hoje nos recebe.
É compreensível que as costas de qualquer colorado se verguem sob o temor do fracasso iminente. Tal temor nada tem a ver com a boa arrogância flamenga. O que faz os joelhos tremerem no pampas é o futebol que o Flamengo está jogando sob o comando de Jorge Jesus é o Senhor. Um futebol reverente, cortês, amável e, acima de tudo respeitoso, com o torcedor e com o adversário. Qualidades diametralmente opostas à arrogância. E ao mesmo tempo é um futebol ofensivo, eficiente, com traços europeus, mas que não perdeu sua latinidad e nem seu tempero brasileiro, moreno, alto, bonito e sensual.
Há alguns anos exaltamos o estoicismo do rubro-negro, para sublinhar nossa imperturbabilidade, a rigidez dos nossos princípios morais e a nossa extraordinária capacidade de resistência ao sofrimento, adversidade e infortúnio. Tais qualidades, que estão na essência do ser rubro-negro, se potencializam ainda mais diante dos grandes desafios. Há quem chame de arrogância. É mais um ponto em que nos diferimos dos nossos rivais de ocasião. Nós nem nos preocupamos com a torcida do Inter. Não está no nosso radar.
Nós, os estoicos rubro-negros, nos revelamos verdadeiramente quando nos deparamos com a escolha de se submeter a algo degradante, ou então encarar uma punição severa ou a morte. Que é uma metáfora exagerada, mas adequada, para uma desclassificação da Liberta. Se ao colorado a fila de 40 anos no Brasileiro não causa embaraço ou vergonha, para o rubro-negro a fila de 35 sem disputar uma semifinal do continente é um flagelo, uma ignomínia, uma degradação. Em uma situação limítrofe o rubro-negro, por tudo que já passou, não desiste, não se entrega, não coloca o fracasso em perspectiva.
Arriano, discípulo e principal divulgador dos ensinamentos de Epicteto, um dos popstars da escola estoica, narra um encontro entre Agripino e Floro, um historiador romano que havia sido convocado pelo imperador Nero para atuar em um dos seus espetáculos. Nero gostava de obrigar romanos famosos e nobres a atuar em suas tragédias, geralmente em papéis degradantes. A recusa a tal convocação via de regra significava a morte. Abalado, Floro vai visitar seu amigo Agripino, o filosofo estoico.
– O que devo fazer? – Pergunta Floro. – Se me recuso, serei decapitado. Se participo, serei humilhado perante Roma inteira.
– Nero me convocou também – diz Agripino.
– Então o que faremos? – Diz Floro.
– Tu apareces na tragédia – diz Agripino.
– E tu?
– Eu não – diz o estoico.
– Mas por que devo eu, e não tu, aparecer nesse espetáculo? – indaga Floro.
– Porque tu já consideraste tudo – diz o estoico.
Assim como Agripino, o rubro-negro sequer considera a ideia da desclassificação. A chegada na semifinal da Libertadores 2019 já faz parte de nossas vidas e representa tudo em que acreditamos. O futebol jogado no Maracanã há apenas sete dias, a bike do Arrascaeta, a raça de Rondinelli, a ginga de Adílio, o legado de Zico, o peso atômico do nosso Manto, é que bancam a nossa confiança. Não temos qualquer desculpa preparada caso as coisas não saiam como esperamos. É do nosso caráter altivo e sempre positivo não abrir o mínimo espaço para esse tipo de preocupação mesquinha com a mera sobrevivência. O Flamengo veio, e vai, só pra vencer.
Quem é Flamengo já nasce pronto e sabe como se comportar nos momentos mais solenes. Temos uma vida inteira de preparação e convívio com as maiores glórias. Sempre esperando o melhor, sempre se preparando para o pior e nunca supresos com nada que possa ocorrer entre os dois extremos. O Flamengo vai em direção à luz. Nos ombros da sua torcida. Quem quiser pode chamar de arrogância. Mas o nome certo é predestinação.
Mengão Sempre
Grande Arthur! Obrigado por descrever tão bem o nosso sentimento. Termino a leitura desse texto em lágrimas.
Texto maravilhoso, vou chamar de Arrascaeta.
Arthur, você é quem melhor descreve o sentimento rubro negro, sempre. Parabéns e obrigado! Antes e depois dos jogos estou sempre aqui.
Caralho, essa foi inspirada p cacete.
Parabéns Arthur, SRN da Fla JB (Joia).
Arrogantes e orgulhosos por sermos nação que deu certo.
Vc é o escriba inspirador e profeta, que representa este povo.
Estamos em um processo evolutivo, consistente para dominar as Américas.
Arrogância não! Melhor texto Brasil. Ajuda a entender e extender a riqueza e o orgulho de fazer parte da nação que dá certo!