Na sexta-feira, também conhecida como amanhã em algumas partes do mundo, menos na Austrália onde, dependendo do horário em que você estiver lendo estas mal traçadas, a nossa boa sexta-feira brasileira pode estar sendo chamada de hoje ou ontem, vão sortear os grupos da Libertadores 2022.  

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O sorteio é um evento muito agradável, daqueles que só poderiam rolar mesmo no multiétnico Paraguai. Ouvimos alguns dos muitos sotaques do continente e revemos alguns craques do passado recente em ternos engraçados tirando bolinhas de uma tigela. É bem legal e não demora muito. E o mais importante, o sorteio marca o início oficial da neurose anual rubro-negra com a Libertadores.

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Três anos após nosso melodramático reencontro em Lima com a cobiçada, exigente, leviana, interesseira e desgraçada de linda pra caralho Copa Libertadores da América, a torcida rubro-negra ainda não sabe dizer qual o status da relação com a moça. Apesar de ser inegável que ela ultimamente tem dado muito mole pro Flamengo, ainda não dá pra dizer se estão se pegando mesmo ou se foi só uma ficada.

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A real é que nos últimos 40 anos o Flamengo saiu com ela 17 vezes e só dormiram junto em duas. Não é uma estatística das mais bonitas, mas pelo menos é sincera. Diz na nossa cara que o normal, o natural, o ordinário, o padrão, o trivial, o mais frequente, é que o Flamengo não ganhe a Libertadores.

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Ainda que não me orgulhe nem um pouco por mencionar tema tão desagradável, o faço com a consciência leve, porque é evidente que a torcida do Flamengo, notória pela sua racionalidade, não aceita esse fato em particular e quem o aceita, pode acreditar, é terrivelmente clubista.

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Ora, veja lá se há algum sentido em torcer para um time de futebol considerando apenas o que é concreto, tangível e mensurável. A torcida do Flamengo sabe que se a Libertadores fosse uma competição meramente esportiva as estatísticas prevaleceriam sempre e todo o esforço da torcida seria, se não desnecessário, redundante.

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É exatamente a capacidade da torcida em distorcer as realidades numéricas que faz a graça do negócio todo. Torcer fica muito mais gostoso quando misturamos um pouco de loucura e sonhamos, pedimos e materializamos milagres. Que são essenciais quando se pretende alcançar o que racionalmente parece ser inalcançável.  

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A maior parte da torcida do Flamengo ainda se lembra da sensação opressora de jogar uma Libertadores antes de 2019. Cada rubro-negro do planeta carregava um caminhão nas costas, que a cada ano ficava mais e mais pesado com a obrigação moral e a necessidade física de voltar a vencer. Tempo de muito sofrimento, mas quando o Flamengo não ganhava a Libertadores o mundo não acabava. Catavam-se os cacos e a vida seguia. E durante 38 anos a cada vez que o Flamengo se reerguia a torcida chegava junto pra tentar outra vez.  

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Como a mente humana é cheia de mistérios e muito suscetível à febre do ouro, desde 2019 essa rotina mudou radicalmente. Talvez seja cedo pra dizer se mudou pra melhor. Porque um sentimento muito difundido atualmente entre a torcida, um sentimento que até 2019 era apenas uma excentricidade exclusiva de alguns fanáticos, é que em 2020 e 2021 o Flamengo perdeu duas Libertadores. Indiscutível que em matéria de Libertadores perder duas é uma sensação muito pior do que não ganhar quinze.

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É esse tipo diferente de carga que agora faz pesar aqueles caminhõezinhos que a torcida do Flamengo se acostumou a carregar nas costas. Junto, é claro, da obrigação moral e da necessidade física de ganhar Libertadores, que já se tornaram traços indissociáveis da personalidade do rubro-negro moderno. Difícil dizer se esse sentimento é uma evolução ou um retrocesso na busca pela autorealização de cada rubro-negro.

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Aquelas 14 Libertadores jogadas entre 1982 e 2018 foram sofridas, mas os tocos que o Flamengo levou só aumentaram o tesão pela conquista. A torcida, e o próprio Flamengo, que muitas vezes entrou na competição com absolutamente zero chances de êxito, sempre partiu do princípio de que já tinha o não e que não custava nada tentar o sim. Guerreiragem raiz, por pior que fosse o desfecho o soldado caía atirando. Morria-se feliz, sem achar que tava saindo no preju.

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Mas hoje em dia a essência do discurso corrente é que o Flamengo, por ter uma folha salarial assim, um orçamento assado ou uma receita cozida ou frita, joga a porra da Libertadores sozinho, sendo o único responsável pelo seu eventual sucesso ou fracasso.  Talvez a percepção da própria riqueza, algo com que a torcida ainda está aprendendo a lidar, além de ter alterado alguns padrões morais e comportamentais do rubro-negro médio, venha cobrado seu preço em tolerância e empatia, no sentido de percepção do outro.  

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Comprovando que era verdade o que o Tio Karl dizia nos churras da família: toda divergência de pensamento se origina na luta de classes. Bastou o Flamengo arrumar um dinheiro, dar um tapa no barraco, melhorar um pouco de vida e boa parte da mulambada já achou que era rica, com preocupações, preconceitos e comportamentos burgueses, que incluem o detestável hábito de medir tudo em unidades monetárias.  Conhecendo o preço de tudo, mas não sabendo o valor de nada.

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O grego Epicuro, que aprendeu a ser rico desde o dia em que nasceu e colocou a ataraxia (ausência de preocupação/inquietude) no centro do seu sistema filosófico, dizia que a verdadeira riqueza não consistia em ter muitas posses, mas em ter poucas necessidades. Até os céticos e os estóicos, que disputavam o mesmo campeonato que os epicuristas, concordavam nisso.

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É óbvio que nenhum desses fanfarrões da Atenas clássica jamais chegou nem perto de torcer por um time de futebol. No máximo um epísquiro à brinca quando o sol não tivesse muito forte. Mas Epicuro jogou onde? Pirro de Élis chupou laranja com quem? Não poderiam mesmo fazer a menor ideia do que a bola hoje representa e simboliza para os mulambos do mundo. E muito menos poderiam saber que para estes a vida não faz o menor sentido se o Flamengo não tiver pelo menos três Libertadores na sala de troféus ainda esse ano.  

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Que venha o sorteio. Time que quer ser campeão não escolhe adversário. Ano passado pegamos só carne-assada e deu no que deu. Se no fim das contas tudo consiste em desafiar os deuses vamos jogar como os estóicos, não se deve temer a nenhum adversário. É melhor ficar logo na chave da morte, ir pra pista, encarar o que o destino mandar, sobreviver heroicamente e assustar os mais fracos. Que mané ataraxia, quem é Flamengo sabe que não se pode ter um minuto de paz nessa caralha. E que, pobre ou rico, só tem graça viver assim.

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Faltam só 13 jogos para o TRI.

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Mengão Sempre

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