A reunião de pauta começou pontualmente atrasada, com todos os membros do portal República Paz & Amor devidamente bem vestidos, com seus Mantos Sagrados. Só o Bruno Nin, sem conseguir escolher entre suas 2.170 blusas do Flamengo, apareceu na telinha do Zoom sem camisa. Destaques para Nivinha, com um agasalho flamengo branco, de frio, e para Jorge Murtinho, que vestia, como ele mesmo contou, orgulhoso, um manto “do tempo em que eu era cabeludo”. Era da época do Alcindo, quando aliás o Alcindo também era cabeludo. O papo começou sem toquinho pro lado, estilo o Flamengo de 2019.

– Patota de Cosme, como vocês sabem sofremos um ataque hacker, da turma de russos rival daquela que deu o bote no Mauro Cezar. O portal saiu do ar mas já está nos trinques, graças ao nosso bravo Nin, que manja tudo dos paranauês. Agora que consertou vocês podem voltar a usar o brinquedo, que tal?

– Caceta, chefia, tá osso. Enquanto o Flamengo for treinado pelo Ro…

– Sem baixaria, por favor. Evitemos nomes feios. Todos sabemos que falar de futebol com 220 mil mortos fedendo no país é obra de malucos ou doentes, mas temos 40 milhões de leitores para distrair, ou acalmar os nervos. De mais a mais, que maneira melhor de segurar esse povo em casa do que postando no portal, porra?

– Verdade. Vocês trouxeram alguma ideia?

– Pensei num abre aqui, vejam se curtem? “Numa temporada em que só dá Abel, será que o Botafogo vai Caim?”

– Alguma ideia de verdade?

– Eu tô com uma aqui: “Eu não tenho culpa, eu apoiei o Dome.”

– Nota 5. Próxima?

– Gente, não dá. Esse Flamengo é cronicamente inviável!

– O Flamengo em crise é dureza, ele não tritura apenas nosso humor, nosso fim de semana e até um grande elenco de jogadores. Ele ainda por cima acaba com nossas ideias de crônica. Estou com uma frase do Nelson Rodrigues desde maio, e não consigo encaixar. Sintam só: “O vampiro de Düsseldorf, que era especialista em sangue, se provasse o sangue de Gérson, havia de piscar o olho: — ‘Sangue do puro, do legítimo, do escocês.’”. Era pro outro Gerson, mas qual frase!

– Rapaz, torce para dar tempo de usá-la. Do jeito que estamos dilapidando o patrimônio, o Gerson já já toma o rumo e vai jogar em outras plagas. Que raiva desses cornos. Acho que só vamos remontar um time vitorioso na próxima década.

– Dunlop, nada?

– Tem um velho ídolo flamengo que eu curto demais, mas nunca consegui encaixar numa crônica. O Engole-Garfo.

– Hein?

– Lembram dele? Pensei em vir lá dos anos 1930… Ah, os tempos de Antônio Rebello Junior, o Engole-Garfo! E terminava nos dias de hoje, em que a gente engole cada coisa…

– Boa notícia, gente: estou com uma crônica pronta. O gancho é o centenário da Clarice Lispector, e o texto se chama “A paixão segundo GH”. O GH da crônica, claro, é o Gustavo Henrique, nosso zagueirão que fez gol no fim de semana. No livro da ídola Clarice, GH vivia em dúvidas consigo mesmo, numa tristeza de dar dó, e comia até barata viva. O GH do Flamengo hoje duvida de suas capacidades, de sua impulsão imensa de menino-homem, de foguete-zagueiro… E em vez de baratas vivas, papa mosca.

– Ideia do caralho. Uma pena o futebol ter 90 minutos, né? Se a gente não entrega a rapadura em Curitiba, era a hora certa.

– Acho que o problema do GH é de numerologia. Beque de camisa 2? Mas vai que o GH joga pra cacete contra o Grêmio e mete outro gol?

– Turma, estamos tentando falar sério aqui.

– Perdão. E a seção Ladrilheiros, com os cronistas especialmente convidados? Conheço um poeta que faz uns textos de futebol sensacionais, que acham? Li um lindo sobre os goleiros. Ele só é botafoguense…

– Seu cu. Com todo o respeito.

(Nivinha cospe o café.)

– Amizades, que tal algum gancho da MPB? Crônica no Paz e Amor tem sempre uns versos espertos do cancioneiro nacional.

– O Ro… digo, o treinador lembra aquela personagem do samba do Zeca Pagodinho, hein? “Quis comer arroz-doce com quiabo / Botou sal na batida de limão…”

– Cara, como é que na entrevista de emprego não teve um disgramado capaz de perguntar: “E o Pedro e o Gabigol, quais suas ideias pro ataque?”

– “Deu lavagem ao macaco / Banana pro porco / Osso pro gato / Sardinha ao cachorro / Cachaça pro pato / Entrou no chuveiro de terno e sapato / Não queria papo…”

– (Batucando) Essa é boa demais. Mas no fim o tal vacilão pega o tresoitão e dá um tiro na mão, do próprio irmão. Tá mais pro Bozo que pro distribuidor de coletes.

– Boa, boa. Cadê o Arthur?

– Foi acender o cigarro.

– A cobra tá fumando mesmo. Sabem o que eu acho mais terrível nisso tudo, rapaziada? Vou falar, não é pra fazer poesia não, mas os caras tiveram um sinal dos deuses e não aproveitaram. Aquele gol do Gabigol em Lima não foi um mero lance futebolístico, gente: nós vimos a chegada do Segundo Sol da música da Cássia Eller, o que iria realinhar a bagaça toda. Se sou o Landim e estou naquele estádio, com meus familiares e tudo, e vejo aquela explosão no gramado, eu largava tudo. Tirava os sapatos na hora, calçava as alpargatas e virava monge, e ainda dava todo meu dinheiro a quem precisa – ou, ao menos, aos parentes dos Garotos do Ninho. Mas ninguém da diretoria enxergou o segundo Sol, meus amigos. Foram agraciados com um milagre e voltaram iguais, terrivelmente iguais, errando como qualquer humano besta.

– Voltei do cigarro. Falaram alguma coisa que presta?

– Nada, chefia.

– Bem, eu vou escrever sobre o rei Midas e sobre Tmolo, deus das montanhas. Escrevam o que der na telha. Lei de Muralha: “Faça o que seu coração mandar”. Dunlop, vai mesmo de Engole-Faca?

– E essa reunião? Não rende crônica, não?

– Vá saber. Tenta aí, qualquer coisa é melhor do que as substituições que estamos vendo. Publica, e vê se o povo aprova nos comentários. Vamos nessa? Estou ficando sem bateria.