Já sabemos que não pega nem bem ficar gastando o precioso tempo do prezado leitor com as miudezas do Campeonato Carioca. Contudo, é impossível ignorar o que aconteceu ontem no gramado do Maracanã.

Após mais de 100 dias ausente o Flamengo fez sua reaparição nas telas nacionais com o fausto e a pompa que se espera das grandes estrelas do entretenimento mundial. Em um daqueles raros casos em que o meio foi mais importante que a mensagem a diminuta relevância esportiva do Flamengo x Boavista pela Taça Rio 2020 foi totalmente obliterada pelos reflexos da sua transmissão pela Fla TV.

A transmissão, que alcançou números acromegálicos de audiência, engajamento e arrecadação, foi um marco histórico nas relações estabelecidas entre os clubes e as emissoras de televisão ainda na década de 70 do século passado. E as suas consequências se farão sentir por muitos e muitos anos por todas as torcidas do Brasil.

Ainda que restrita pelo caráter paroquial da desimportante competição rural, a transmissão do jogo deixou patente para o mercado, e exposta à corrosiva inveja arcoírista, a capacidade de mobilização do Flamengo e o poder acachapante da torcida mulamba. Uma força econômica primitiva e descontrolada que o Flamengo, até que enfim, se propôs a domar e colocar a serviço do seu próprio enriquecimento e não ao enriquecimento dos outros. Demorou.

A transmissão em si, tecnicamente falando, foi ok. Imagem ótima, áudio bom, transmissão profissa com todas as virtudes e alguns dos vícios aos quais o público desses eventos já está familiarizado. O jogo foi o que se esperava, um treino com uniformes e súmula no qual o Flamengo não correu nenhum risco. A emoção mesmo ficou por conta do ansiado reencontro do time com a torcida. Pela primeira vez na vida da maioria da população o Flamengo esteve ausente por mais de três meses. Fato que o clube soube capitalizar com muita sagacidade.

A verdade é que a torcida, em sua infinita sabedoria, logo percebeu que o Flamengo não estaria disputando nada com o simpático Boavista, ou com algum dos seus concorrentes ao título Carioca. Não estaria nem mesmo disputando com o Corinthians, Palmeiras ou Atlético Mineiro. A torcida sacou que o Flamengo travava uma batalha com o Liverpool, com o Barcelona e com o Real Madrid pela proeminência entre as TVs dos grandes clubes do mundo. Os 4,2 milhões de assinantes alcançados pela Fla TV ao fim do jogo o consolidaram como um player de responsa na arena onde o futebol do futuro se jogará. Ponto pra nós.

Enquanto do lado de fora a Magnética assombrava o mundo a rapaziada dentro de campo fez sua parte e amassou o Boavista. A longa parada forçada não alterou a pegada do time, que não deixou o pessoal de Bacaxá sequer pegar na bola. O que não impediu que o Míster demonstrasse eloquentemente seu justo emputecimento com qualquer coisa que não seja a excelência. Pedro mais uma vez deixou um côco no balaio, provando que a longa punição disciplinar que cumpriu em Xerém e Firenze não afetou o faro de gol que lhe abriu as portas da Gávea ainda na infância.

E o Joker Gerson, com um golaço daqueles de levantar o Reino de Wakanda, mostrou porque sua contratação foi um dos melhores negócios que o Flamengo já realizou. Os dois malandros, que a cada dia apagam as nódoas das más companhias do passado, deram números definitivos ao placar, garantiram o Flamengo como o maior pontuador no campeonato e mantiveram a distância intergaláctica entre o Mais Querido e seus distantes perseguidores.

Os torcedores do Flamengo, os grandes protagonistas da jornada esportiva, demonstravam sua alegria pelo reencontro com o time e com eles mesmos. Ser Flamengo é praticar a arte do encontro e da empatia. Inflaram a audiência e deram dinheiro à vontade pro clube. E não deram muita bola pro jogo, a certa altura a torcida era muito maior para alcançar logo os 5 milhões de assinantes no canal do clube do que pelo terceiro gol no Boavista. Uma questão de prioridades.

O abalo causado por esse jogo e suas circunstâncias foi tão profundo que hoje a Globo cancelou o contrato de transmissão do Carioca. Que agora morreu mesmo, confirmando os prognósticos feitos há anos. Sem Flamengo e sem a Globo não há mais nenhum sentido em atravancar cinco meses da temporada com a simpática competição praiana.

O fim do Carioca é bom pro Flamengo, pro Vasco, pro Botafogo, pro Bangu e até pra Globo. A morte do carioqueta é um fato que agora só depende da expedição do atestado de óbito para ser oficializado. É o início do desmoronamento de todo o sistema federativo que amarra o futebol brasileiro às suas mesquinharias políticas regionais. Nada será como antes.

Os clubes terão que sobreviver jogando o ano todo, em competições nacionais no sistema de ida e volta, abrigados em três, quatro ou quantas divisões se fizerem necessárias. O que será ótimo para os clubes e para as emissoras de TV. A velha lenda de que o Flamengo foi inventado pela Globo também está enterrada. Depois de conseguir 14 milhões de views em um jogo de meio de semana contra o Boavista em um estádio vazio finalmente o país terá que admitir que foi o Flamengo que inventou a Globo.

Esperamos agora que o Flamengo, enquanto instituição, seja tão sábio quanto a sua torcida. Que não se embriague com o sucesso de um movimento vitorioso contra o monopólio da Globo para criar um monopólio da Fla TV. Jamais seremos um Real Madrid se os outros clubes não forem um Barcelona. Não adianta pensar em hegemonia enquanto os outros clubes estão na merda. O Flamengo não joga sozinho. Onde prevalece a desigualdade ninguém é rico de verdade.

Mengão Sempre