Para surpresa de ninguém a guerra Flamengo x Globo já está rolando. Nos seus movimentos iniciais as partes despacharam suas tropas em direção aos microfones para expor seus pontos de vista conflitantes e trocaram amabilidades através de notificações judiciais, que são mais ou menos como um email de ameaça que você manda um oficial de justiça entregar.

Pra analisar direito o que tá rolando o cabra deve ter ao menos uma carteirinha da OAB válida ou alguma expertise na negociação de direitos televisivos de eventos esportivos. É bom que se tenha também algumas noções básicas de como a banda toca em Brasília. Sem essas qualificações resta ao corneteiro médio ouvir as partes, repetir o que lhe agrada e esquecer o que não soa tão bem. E, claro, torcer para que as instituições continuem funcionando normalmente, já que essa encrenca só se resolverá com as marteladas dos nossos imprevisíveis capa-preta.

Esgotados os poderes da canetada bozolianas, um dos teatros da guerra é o Congresso, onde a Medida Provisória precisa ser referendada pelos prezados parlamentares até que se torne um Projeto de Lei. Nesse seleto ambiente a sanha legisladora já a engordou com mais de 100 emendas, algumas com a morfologia própria dos jabutis arborícolas.

Dos juristas, advogados, rábulas e bacharéis das ciências jurídicas formados pelas Faculdades Google e WhatsApp ouvimos que o Flamengo não pode transmitir seus jogos do Carioca pela FlaTV ou outras plataformas digitais porque o direito ao televisionamento das partidas dos seus adversários já foi adrede adquirido pela Globo. Mas também ficamos sabendo que a Globo pretende enquadrar o Flamengo através de cláusulas de um contrato ao qual o mesmo jamais assinou. E ainda por cima, baseando-se em uma legislação que não vale mais.

Aliás, em defesa dos seus interesses a Globo já partiu pro hardball, ameaçando o não cumprimento do que já foi acordado em contrato com os outros clubes. Botando pressão pra cima dos pequenos, usando todo o seu peso econômico para manter as coisas como estão e colocando em questão a realização do Campeonato Carioca de 2021, mini tragédia vaticinada aqui nesse humilde bloguinho em 19 de janeiro:

Maior responsável pela suas glórias e o único a garantir a sua sobrevivência nos últimos anos, o Flamengo pode estar dando o coup de grâce no vegetativo Carioca. Se o Flamengo mantiver sua posição de não fechar o acordo com a emissora que o transmite para todo o país, o Campeonato Carioca vai à garra. E a morte do Carioca por inanição provocada por ausência do Flamengo deverá ser comemorada.

Passados cinco meses da funesta previsão o Carioca agora é só o pó da rabiola, o barbante da linguiça, o caldinho do Miojo, o chinelo do mendigo. Ninguém está interessado no seu destino, sua morte aparente é um símbolo do entusiasmo nacional pela subnotificação. Mas é chato que o Flamengo, e só ele, esteja se consagrando como o matador do Carioca.

Já aprendemos que nas nações onde o negócio do futebol é muito mais sólido, e blindado para os efeitos das canetadas vida loka, os grandes clubes se fortaleceram muito quando passaram a negociar em bloco seus direitos de exibição. Foi das TVs e operadoras de telefonia que veio a grana para a contratação dos melhores jogadores do mundo e a subida geral do nível das competições. Aqui no Brasil não tem como ser diferente, quem já é grande vai ficar ainda maior.

Para os clubes pequenos o futuro é incerto. Sobretudo se prevalecer a postura do Flamengo em realizar suas negociações individualmente. Os especialistas em marketing esportivo têm sido unânimes em afirmar que a única saída para o fortalecimento, não apenas dos grandes, mas de todos os participantes do campeonato, é a negociação dos direitos de exibição em bloco, através de uma liga. Como se tentou fazer em 1987 com a fundação dos Clube dos 13 e a disputa da Copa União.

A Copa União, aquela competição modelo que exibe até hoje a maior média de publico da historia do Campeonato Brasileiro. Aquela competição em que os coirmãos do Flamengo, quando lhes foi conveniente, esqueceram o que assinaram e até hoje, com o beneplácito da proba CBF, contestam a validade da conquista do Flamengo. É com esses simpáticos traíras que não honram o que assinaram que os especialistas sugerem que o Flamengo una forças para arrombar os cofres da Globo e buscar a justa remuneração pelo fornecimento do conteúdo mais valioso da grade da emissora.

O Flamengo já é o maior em tudo, torcida, faturamento, engajamento e boniteza. Agora, com muita justiça, faz o que for possível para ser maior ainda. Claro que tamanha disparidade em relação aos adversários fica um pouco antipático. O Flamengo adquire aquele ar de protegido pelo sistema que empana as conquistas do Real Madrid na Espanha e da Juve na Itália. Empana pra torcidas adversárias, que fique claro, pra madridistas e juventinos tá tudo certo, os outros que lutem.

São estes mesmos especialistas que preveem um futuro pouco auspicioso para a distribuição do Campeonato Brasileiro no exterior caso a disparidade de receitas e investimentos que hoje separam o Flamengo do resto da turma se acentuar. Se o Flamengo insistir em negociar sozinho com as emissoras a disparidade trará muito mais dinheiro para seus cofres, mas trará também a queda na competitividade e, fatalmente, a perda do interesse do público na competição.

É um dilema que se apresenta para o Flamengo. Pensar no curto, médio prazo, negociar sozinho e faturar tudo que for possível antes que o mercado, essa entidade impessoal cuja parte final de sua extremidade superior dizem ser invisível, resolva fazer justiça.

Ou ser altruísta e empático, pensar no longo prazo, fortalecendo a nossa principal competição e projetando um futuro em que o mundo voltará a se render aos encantos do nosso futebol-arte. Nem que para isso seja obrigado a, mais uma vez, esquecer as ofensas passadas e confiar em quem já o apunhalou pelas costas sem hesitar.

Dessa vez não é pano e nem falsa simetria. É mesmo uma escolha muito difícil.

Mengão Sempre