[ Por Adriano Melo, escriba dos Alfarrábios do Melo ]
Outro dia alguém me perguntou: “Você tem UMA CHANCE de voltar no tempo. Qual dia escolheria?”
Pus-me a matutar. Vi todos os sete Brasileiros, as Libertadores, o Mundial, uma beirinha de um tricampeonato e depois tantos outros, vi títulos nacionais, internacionais, uma constelação de craques passou pelos meus olhos.
Teria de ser algo inédito, nunca antes vivido.
Penso e penso, fecho os olhos, apenas imerso em sonhos.
De repente, desperto com um facho de luz. Holofotes, quer dizer, refletores. É noite, uma brisa morna e persistente aquece-me o corpo, inquietamente instalado sobre um degrau cimentado, olho ao redor e me sinto pequeno diante do leviatã de cimento que me cumprimenta, familiar. Estou no Maracanã.
O Flamengo entra em campo. Também o adversário. Que também é o Flamengo.
Não parece fazer sentido. Um arquibaldo grita “olha lá o Joel, como tá gordo”, outro “o Dida não mudou nada”, “pô, olha só o Valido, será que vai meter gol hoje”?
Esfrego os olhos, vislumbro semblantes familiares. Sim, é um amistoso comemorativo, denuncia a arredondada forma de alguns jogadores. De rubro-negro, está ali o time do segundo tri, o Rolo Compressor, cuidadosamente trajado até de calções negros para relembrar o dia da conquista. De branco, os senhores do primeiro tri, reforçados por alguns mais “jovens”. Arrepio-me. É surreal, misterioso, feérico. Inimaginável.
Trinta anos de história estão em campo. Trinta anos de Flamengo.
Soa o apito. Vinte e dois heróis começam a acariciar a bola, 40 mil eleitos dedicam-se a suspirar. E lá está Bría lançando Valido, que é desarmado por Jordan, que dá a Dequinha, que ajeita com extrema categoria e arruma para Zagalo, que cruza para Benítez, que perde para Biguá, que estica para o “jovem” Gerson Canhotinha, que ajeita para Silva Batuta (outro “garoto”), que chuta sua famosa bomba, que vai pro gol, e Zizinho bate palma.
Sonho, puro sonho.
Agora é Dida, o homenageado da noite, que trama com Joel, que dá a Babá, que arranca gemidos ao riscar a defesa e rolar na saída do goleiro, o segundo tri empata, e Don Fleitas dá um sorriso, satisfeito. O aposentado Flávio Costa continua obcecado, não quer perder nem amistoso, mas o clima é ameno, e Dotô Rúbis aciona Duca, que perde pra o grande Domingos (sempre com enorme categoria), daí a Nelsinho, que ajeita para Henrique Frade, que chuta, na confusão um pé põe pra dentro, é gol, 2 a 1 pro primeiro tri, mas agora ninguém mais presta atenção pra isso, é Flamengo contra Flamengo, é pura magia, espetáculo, comoção, é a gaita de Ari que trila junto com o apito final, não há vencedores ou vencidos, duas gerações de tricampeões trocam abraços e afagos numa retumbante comunhão com sua nação, que explode em palmas e cânticos emocionados. Ninguém está imune, nada está indiferente à belíssima expressão de fé flamenga professada dentro das quatro linhas do Maracanã.
Mas ainda há mais.
Agora é a hora do jogo principal. O time titular do Flamengo entra em campo, junto com uma equipe que veste alvinegro, mas não é o Botafogo. São europeus. O placar esclarece, é a Juventus de Turim, é o poderoso campeão italiano. Olhar mais atento, logo se pode identificar suas estrelas, estão lá o goleiro Zoff, os defensores Scirea e Gentile, o meia Causio, o atacante Bettega, metade da seleção italiana.
O jovem árbitro José Roberto Wright dá início à partida. Eu não estou refeito do choque da preliminar, e agora vejo diante dos meus olhos uma nova constelação de craques. Rodrigues Neto, Liminha, Doval, Zico, Júnior…
Os italianos se entrincheiram atrás, chamam o Flamengo, que, pleno da impetuosidade de seu time jovem, aceita o combate e cai na armadilha. Primeiro contragolpe, Cantarele salva. Segundo ataque, agora é Rondinelli que se atira na grama e evita o perigo. Mas na terceira bola os italianos saem na frente. O Flamengo parece assustado, e o torcedor, ainda zonzo, mal consegue gritar.
É uma noite linda, de festa. E um garoto alto e magrelo começa a pensar que isso do Flamengo perder não tá certo. E começa a chamar a bronca. E começa a mudar a história do jogo. No meio de tantos craques, Geraldo resolve jogar bola. O torcedor coça a cabeça e sorri. Porque quando Geraldo quer bola, adeus.
Cabeça levantada de monarca, Geraldo vai ignorando solenemente o mais temido e respeitado sistema defensivo do planeta, e distribui passes cortantes e precisos, e lançamentos aveludados, chamando Júnior e Rodrigues Neto pro jogo. Numa dessas tramas, Geraldo acha Doval, o endiabrado Doval, que se livra de seu marcador e manda a bomba, Zoff faz grande defesa e espalma, o próprio Doval vem no rebote e mergulha de cabeça, é o empate, suado, na raça, bem do jeito de Doval, bem ao gosto flamengo, o estádio explode, vejo-me berrando e gritando gol. Sei como isso vai acabar. Mesmo que não soubesse.
Porque a Nação agora quer a vitória, enche-se de flama, e vai empurrar seu time até o fim. Zico, caçado por todo o jogo, recua, faz o balanço com Geraldo, que continua imarcável, assobiando suas jogadas de gênio e enlouquecendo adversários, companheiros, torcedores e jornalistas. Geraldo gesticula qualquer coisa pra Zico. Recebe de Doval, e começa a trotar um trote impassível, inatingível, pairando pela defesa italiana, nem olha o solo, leva um, dois, três, quantos aparecem pela frente.
Zico, que já sabe o que fazer, acompanha o lance e numa piscadela percebe a bola lhe grudando os pés, oferecida manhosamente por um assobio afetuoso do amigo. O Galinho espera Zoff lhe dar um canto, apenas para deslocar o consagrado goleiro e rolar macio no outro lado. O Flamengo vira, faz 2-1 e vai ganhar do campeão italiano, uma virada que coroa uma noite de gala, em que a palavra final é de Zico.
Como brinde, uma espécie de recital é executado por um moleque que faz sua estreia nessa noite, um menino magrinho, que arranca dribles e risadas. Um tal de Júlio César. Esse promete. muitos dizem. E, às gargalhadas, termina a partida.
O gigante de cimento vai-se esvaziando aos poucos, escoa-se uma multidão feliz e risonha, que canta alegre sua paixão. Sem forças, deixo-me abandonar enquanto as lágrimas insistem em molhar-me a face. Úmida, minha vista embota-se, e os contornos da incessante luz começam a se misturar ao verde intenso, ao negrume celeste, amalgamando-se em uma nuvem disforme, que me vai envolvendo em um sono profundo, saciado, pleno.
Acordo. E volto à vida.
E sim, um sorriso me remete de volta à pergunta “e se pudesse voltar no tempo?”, sim, agora tenho a resposta clara, cristalina.
Cinco de julho de 1975. A noite em que o Flamengo viu sua História jogar futebol.
* Adriano Melo colaborou com praticamente todos os blogs flamengos da história da internet, e escreve sobre o clube desde que o leitor provavelmente ainda balouçava no saco de seu pai.
Ia dizer que estavam fazendo falta as crônicas do Melo, mas com tanta categoria não tem como ser falta.
Gênio
SRN
Belíssimo e Saudoso texto. Se eu pudesse voltar na máquina do tempo, lá estaria no mais alto degrau da arquibancada , atrás do gol do Flamebgo, no exato momento que o Deus Zico lança a bola na testa do Deus da Raça Rondineli e sacramenta o início do maior Flamengo de todos os tempos
Eu gostaria de rever o gol do Manuelzinho no jogo-treino da Seleção brasileira de 58 contra o Flamengo, antes da seleção viajar pra Suécia. Estava lá na arquibancada do Maracanã com meus nove anos assistindo ao lado do pai.
Complementando meu comentário, registro também que senti saudades do inesquecível Maracanã, que mataram com as reformas e demolições para o Pan e para Copa. Com o samba do Moa e do Aldir “Saudades da Guanabara” de fundo musical…
Quando o Flamengo ganha ninguém vem escrever… Se eu tivesse de escolher um dia seria difícil…tantos momentos no Maracanã…tambem vi o Zico surgir…vi o Zico ir e voltar…vi o gol do Rondinelli do Nunes tantos do Zico … Eu voltaria no dia anterior da final de 1980 quando o Zico nos colocou em outro patamar…
Texto Goldeplaca!!!
PS: Lembrando aqui com meus botões, do LeandroPeixefrito, CarlinhosViolino, Marcial, Espanhol, Fio, Germano, Moacyr, Adílio e tantos outros…
LIndo demais!!!! Quantos craques já desfilamos no Maraca….
Uma belíssima crônica !
Parabéns !!!!!!!!!!
Sensacional! Que história maravilhosa tem o Clube de Regatas do Flamengo! Quantos craques passaram pela Gávea! O clube ainda é muito devedor de passar tua linda história para as novas gerações, falta nosso Museu e um site melhor trabalhado, contanto nossa história e nossos craques. Lindo texto Adriano, parabéns e SRN!
Bravo! Grandioso!