Ô de casa! Saúde boa? Espero que sim. Outro dia eu estava cofiando minha barba de 81 dias, apoiado em meu cajado, quando alguém que não me lembro anunciou: havia uma novidade no YouTube.
Era a estreia do bem-humorado talquishou rubro-negro “Raça, amor e groselha”, o bate-papo cabeça entre Arthur Muhlenberg e Diogo Almeida, no canal parceiro MRN TV. Até os piolhos da minha barba pararam de brigar por política e ficaram quietos, assistindo e aprendendo.
Lá pelas tantas o Arthur, carteirinha 01 aqui do portal, mencionou um dos mistérios que rondam a cultura flamenga há mais de 70 anos.
“Dizem que o nosso hino, composto pelo Lamartine Babo, teria ali umas bossas criadas pelo maestro Radamés Gnatalli”, falou o eterno Urublog, não exatamente com essas palavras. “E ouvi uma vez que a fabulosa introdução dos metais, a alvorada retumbante que transforma nosso hino num canto de guerra é obra de um arranjador da gravadora Odeon na época, Alfredo da Rocha Vianna, também conhecido como Pixinguinha, mas nunca encontrei confirmação desse fato.”
O poeta e escritor americano Austin Kleon tem um lema que muito me norteia: “Faça algo e dedique a seus heróis. Responda a uma questão que eles levantaram, resolva um problema para eles”.
Decidi então, em retribuição ao papo da dupla que me desopilou, ir enfim atrás dessa história, de uma vez por todas, nem que seja a última coisa que eu faça (voz de dublador da Globo, punhos cerrados ao alto).
De fato, a coisa não foi lá muito simples. Para começo de conversa, há o nome da canção. “Sempre Flamengo”? “Uma vez Flamengo, sempre Flamengo”? “Hino do Flamengo”? “Marcha rubro-negra”? Cada pesquisador, uma sentença. Depois, há a disparidade de datas de sua criação. O clube, por exemplo, diz que o hino nasce em 1945, enquanto a Wikipedia diz que foram todos compostos em 1949. E tome chute de lado a lado.
A seguir, portanto, vai aí a verdadeira história do hino nacional, digo, o hino popular do Flamengo, certamente a música mais cantada da história do Brasil, sem clubismo. Ou que outra melodia que você conhece é levada, há 70 anos, por mais de 30 mil pessoas, todo santo domingo no Maracanã, fora os bailes? Prepare-se então, que lá vamos nós.
* O lançamento do “Hino-marcha da Torcida Rubro-Negra” *
Estamos em 1926, no Rio de Janeiro (rápido, faz uma selfie nossa!). É o ano em que o carioca Lamartine de Azeredo Babo (1904–1963), o magrinho Lalá, toma a decisão mais importante de sua vida: largar um emprego morrinha que tinha na Companhia Internacional de Seguros para se dedicar integralmente à música e ao teatro. Burocrata de dia e compositor à noite, Lalá desistiu de conciliar as atividades quando foi flagrado pelo patrão, na mesa de trabalho, a batucar e escrever música, num dia de inspiração fora de hora.
À época, a magnética torcida rubro-negra ainda engatinhava, mas de seus chocalhinhos saía boa música. De 1920, o hino do Paulo Magalhães (“Flamengo, Flamengo, tua glória é lutar!”) já era cantado e tocado até na Europa. Ainda mais antiga, havia a canção predileta de Galo, Píndaro & cia, entoada nos jantares após as vitórias, registrada pelo jornalista e estádio Mario Filho, em seu livro “Histórias do Flamengo”: “Glória, glória, aleluia, o Flamengo é campeão! Glória, glória, aleluia, quer queiram quer não…”
Fã de futebol, torcedor de carteirinha do América, Lalá já fazia música sobre tudo, e em 1927, com o parceiro Duduca, arriscou sua primeira letra sobre o Mengão. O foxtrote, jamais gravado, é lembrado por seu biógrafo Suetônio Soares Valença:
“Salve Flamengo em fulgor!
Na linha média houve calor…
Flamengo heroico, de glórias fecundo
O mais colosso do mundo…”
Lamartine, como se vê, estava apenas esquentando. Irreverente ao extremo, cheio de amigos, Lalá se tornou um dos mais populares astros do rádio carioca, e encantava com seus trocadilhos seus colega de farras, que iam de Noel Rosa a Pixinguinha, passando por Grande Otelo, Paulo Gracindo e Derci Gonçalves. Que turma, hein?
Nos anos 1940, o consagrado Lamartine reuniu amigos e companheiros para um grande espetáculo de aniversário, intitulado “Até breve, Rio”. No teatro João Caetano, a partir das 21h, com os colegas Héber de Bôscoli e Iara Sales no palco, Lamartine cantaria pela primeira vez em público a música mais querida do Brasil. E assim foi feito, na noite de 10 de janeiro de 1944, uma célebre segunda-feira.
Quem detalha o episódio é seu biógrafo, Suetônio Soares Valença. Narre por favor, mestre Suetônio:
“Lamartine Babo comemorava seu quadragésimo aniversário e o Trio de Osso prometia lançar durante o espetáculo da noite o ‘Hino-marcha da Torcida Rubro-Negra’, em homenagem ao Clube de Regatas do Flamengo, que vinha de conquistar o bicampeonato carioca de futebol na temporada de 1943. E não apenas o hino-marcha dos rubro-negros seria lançado, mas, também, os de todos os dez clubes que haviam participado do certame do ano recém-findo.”
E o Trio de Osso (além de Lalá, Héber e Iara também eram magrinhos) mandou ver, entoando as marchinhas de Flamengo, Vasco, Fluminense, América, Botafogo, Bangu, Bonsucesso, Madureira, São Cristóvão e Canto do Rio, além do hino do Olaria.
Um detalhe especial: o verso inicial da marcha-hino, “Uma vez Flamengo, sempre Flamengo”, existia pelo menos desde 1929, quando foi popularizado pelo ex-remador, treinador, jornalista e flamengo doente Júlio Silva, famigerado criador do Bloco Carnavalesco do Eu Sozinho, num concurso para a escolha da melhor frase sobre o clube.
Seja como for, se o Flamengo foi mesmo o primeiro hino a ser composto, como dizem quase 100% das fontes, Lamartine provavelmente o criou em 1943; cantou em 1944; e o eternizou em vinil (ou bolacha de goma?) em 1945, para ser tocada no carnaval, nos morros, salões e até no front dos nossos soldados na Europa.
(A biografia de Lalá não confirma, mas o desafio de compor os hinos de todos os clubes do Rio teria partido, ao vivo, do colega Héber de Bôscoli. Sobrinho de Babo, o produtor Osvaldo Sargentelli contava ainda que o tio recebera um adiantamento pelos hinos, e não conseguia parar quieto para escrevê-los. Teriam levado Lalá, então, para um apartamento na Senador Dantas, na Cinelândia, com geladeira cheia de comida e bebida para uma semana, e o compositor só saiu de lá com todos finalizados.)
De acordo com o detalhista e cuidadoso biógrafo Suetônio, a primeira gravação oficial da marchinha rubro-negra foi de fato pela gravadora Odeon, em dezembro de 1944, com lançamento oficial nas lojas em janeiro de 1945 – o que explica a eterna confusão sobre 43, 44 ou 45.
Os cantores pioneiros? Os Quatro Ases e um Coringa, grupo dos irmãos Pontes de Medeiros (Evenor, José e Permínio) com o violonista Esdras Guimarães “Pijuca” e o quinto elemento: André Vieira, vulgo Coringa. No encarte, o título da faixa: “Sempre Flamengo”!
A essa altura, o estimado leitor e a paciente leitora já se perguntam, doidos para ir ver outra besteira na internet: e o Pixinguinha?
Bem, o célebre maestro era de fato amigo dileto e grande parceiro de copo de Lamartine, e já havia feito a introdução de ao menos um estrondoso sucesso do Lalá, “O teu cabelo não nega”, quando eram colegas na rádio RCA Victor, em 1931. Teria feito também alguma parte do hino rubro-negro? A resposta, lamento, é não.
Para tirar a limpo, comecei por ignorar meu sangue plebeu e liguei para Marcelo Vianna, o talentoso neto de Pixinguinha. “Nunca escutei isso em casa, não. É lenda urbana, quase garantido”.
Algumas pistas fortalecem o palpite do neto. Para começar, se fosse verdade o Ruy Castro, tremendo entendido de música popular, já teria farejado a história e publicado em seu livro sobre o Flamengo. Outra: Pixinguinha era fervoroso vascaíno. Se tivesse feito arranjo do hino do Flamengo, ou criado introduções para os hinos do Fla e do Vasco, teria falado disso várias vezes, com orgulho ou ironia.
Tem mais: Pixinguinha, por essa época, não estava na mesma rádio que Lamartine e nem era arranjador da gravadora Odeon – estava, sim, preparando um de seus mais elogiados discos, com Benedito Lacerda, nos estúdios da RCA Victor. Para terminar, Pixinguinha largara a flauta para sempre em 1942, por conta de tremedeiras, e vivia em 1943 a pior fase profissional de sua vida. “Trabalhando pouco e gastando muito com o álcool, começou a atrasar o pagamento das prestações da casa”, escreveu seu primeiro biógrafo, Sérgio Cabral, em livro que não menciona os hinos.
Enviei, por desencargo, um email para a casa dos Cabral. Vascaíno como Pixinga, Cabral certamente teria ouvido de seu ídolo alguma menção. Nada feito. O que Sérgio recorda e reforça é que Pixinguinha era um prolífico e genial criador de introduções, mas uma década antes: “Cidade Maravilhosa, de 1934, tem como autor André Filho, mas a introdução é do Pixinguinha.”
E o maestro Radamés Gnattali, teria ele metido sua batuta nessa partitura? Conversei então com diversos pesquisadores, como o rubro-negro Alfredo Del-Penho: “Eu acho que é boato”, diz Del-Penho. “Pelo seguinte: o Lamartine era conhecido pela facilidade que ele tinha de criar solfejos, arranjos e introduções que ficavam tão marcantes e famosos quanto a própria música.”
De acordo com mestre Henrique Cazes, professor de música e fã do choro “Flamengo”, seu velho amigo Radamés “detestava fazer arranjo para banda de sopros, não era a praia dele. Seja como for, as introduções dos hinos dos clubes, certamente, eram mesmo do Lamartine.”
Para tirar a teima, trazemos por fim o próprio Radamés. Em entrevista antiga ao “Jornal do Brasil”, o saudoso regente falou do amigo Lalá:
“Eu poderia, se quisesse, ter entrado em muita parceria, pois não faltaram propostas de compositores”, comentou Gnatalli. “A maioria dos compositores não sabia música e passava suas composições para os arranjadores transporem para a pauta. A nós competia vestir a música toda. Um dos poucos compositores que sabia exatamente o que queria com suas músicas era Lamartine Babo. Ele descrevia todo o arranjo, cantando a introdução, o meio e o fim, solfejava acordes e sugeria partes instrumentais. A gente só fazia escrever.”
Fica assim, então: um verso é de Júlio Silva, a letra e a música são do genial Lamartine Babo – só de Lamartine, e de toda torcida do Flamengo.
E som na caixa! (Clique aqui e ouça essa maravilha)
Mais um capítulo para a História do Flamengo.
Excelente pesquisa.
Só sabia que era do grande Lamartine, mais nada.
SRN
FLAMENGO SEMPRE
Dunlop, parabéns pela bela matéria, ótima crônica em si, além de didática. Fiquei preocupado com os piolhos de sua barba, por isso aqui vai também à guisa (epa!) de informação uma dica bem atual e dentro da cultura “científica” que norteia o presidente. Nada melhor para piolho do que ivermectina, uma droga também muito badalada para prevenir/combater o covid-19, por isso aconselho a usá-la, você estará matando dois coelhos com uma só cajadada. Urgente, acabo de ler a notícia que o citado senhor já está incluindo em seu coquetel milagroso, o alho ( nem original ele é, pois o alho já foi enaltecido aqui pelo nosso Chacal, acho que foi ele quem aconselhou, se não, desculpe o erro). Para completar, você pode incluir uma dose de cloroquina. Ah, sim, não esqueça de comprr uma máquina de descascar alho.
Bolacha de goma? Ou acetato? Não importa. O que vale é o belo trabalho de pesquisa, com contatos históricos. Valeu! Beijos,
o importante foi que nosso hino ficou a cara do flamengo,,,
muito obrigado á todos envolvidos.
SRN !
Encômios ao enciclopédico Dunlop, pela rigorosíssima pesquisa, e também, mas não menos importante, pela linda crônica com que brindou a nação! Saudações rubro-negras,
Espetaculo, Dunlop. Cavucou bonito. Parabens.