Bem que o pequeno Artur, que apareceu lá em casa para ver um episódio do Flamiguinhos, cantou a pedra:
– Você viu? Hoje o Flamengo vai jogar contra Portugal… Aposto que o Cristiano Ronaldo vai jogar!
Talvez fosse até mais fácil, Tutu. Mas qual nada. E assim, em nossa última partida no Maracanã antes do apocalipse planetário – que o cronista Antonio Prata chama de ataque da microscópica mamona assassina –, quase o Flamengo ia se despedindo com derrota. Ia, eu disse bem, e nem sou muito de me elogiar.
Afinal, como todo mundo viu no último sábado – pela FlaTV, iupi – fizemos de novo. Nós não, que nem torcedor havia, e o Maraca se viu ermo como Nova York naquele filme do Will Smith: quem fez de novo foi o time de Jorge Jesus, que Deus o conserve.
Mais uma virada depois dos 42 minutos do segundo tempo.
Um roteirinho tão perfeito, tão impecável e tão ensaiado que, cá entre nós, eu já não duvido que haja mais de um dedo do Mister nessa história. Ou quem garante que na diretoria da simpática Portuguesa não exista um velho companheiro de algazarras do pequeno Jesus?
– Associação Atlética Portuguesa. Estou sim?
– É Jorge Jesus, está lá?
– Ora, ora, amigo Jesus! Estou feito ao bife! A que devo a honra, cabrão?
– Escuta, não julgues mal, mas preciso de ajuda para afiar o espírito dos jugadores. Quero vê-los a virar outro jogo depois dos 89 minutos, para que ganhem confiança para a Libertadores…
– Mas, ora…
– Se aceitas, te envio um fax com o esquema tático para segurar nosso ataque, a posição de teus meias e a escalação de tua equipa corrigida.
– Feito! Vale catimba e ficar se atirando, né?
– Claro, por favoire! Mas não ligue para o Rafinha, é da pá virada esse gajo…
Agora a sério, que personagem este tal Jorge Jesus, não? O camarada até maio de 2019 era um perfeito desconhecido do brasileiro. Ninguém ouvira falar dele, ignoravam se era careca ou cabeludo, e seus sósias tinham vida normal.
Mal podiam desconfiar que aquele treinador, que aos 13 anos viu seu avô (Jorge Fernando Jesus) morrer do coração num estádio, numa final Académica x Vitória de Setúbal, juraria um dia ser campeão nacional, e sua paixão pela bola o levaria ao Brasil, para virar um astro, uma pessoa mais querida que o presidente da República (mas aí também, né…). Para completar, torna-se uma das primeiras personagens a contrair no país o maldito Corona (This is the rhythm of the night / Oh, yeah…), fazendo – de novo– o coração da nação palpitar. Qual saga, amigos, qual saga.
No início do ano no Maraca, ao lado do amigo Furi, testemunhei a adoração de dois jovens ao Mister: “Pode reparar, rapá, o Jesus não monta o time em linhas não: ele surpreende entre as linhas, é ali que os caras esperam a bola e o adversário fica perdidinho.”
Não entendo nada de tática mas achei lindo. Os velhos gênios das palavras, afinal, sempre fazem como Jesus – fingem polir as linhas, enquanto o brilho verdadeiro está nas entrelinhas.
Nas palavras do poeta Guerra Junqueiro, “…quando não vê a olho nu, põe a luneta; quando não vê com a luneta, pega no microscópio; e, se a noite é tenebrosa, transforma-se em tigre; e, se o olhar felino não é ainda bastante perspicaz, transforma-se em vidente, em iluminado.”
Guerra Junqueiro referia-se, no caso, a Eça de Queiroz, o amado romancista português, mencionado por Jorge Jesus numa de suas frases mais conhecidas, registrada em 2014: “Não sou Eça de Queiroz. Têm de me julgar como treinador, se sou bom ou não.”
A frase iria parar no título de sua biografia, e Jesus a explicou: “Aquilo que eu estudo é futebol. Claro que tenho de ter um pouco de cultura geral, mas discurso não é percurso. E jogo falado é uma coisa, jogo treinado outra e jogo jogado outra ainda. O importante é conhecer o jogo e ter um discurso que os jogadores entendam, porque eles não estão a fazer curso acadêmico.”
No início deste mês, a torcida rubro-negra pôde enfim fazer curso acadêmico em Jesus, e escutar suas sábias palavras por duas horas, no já clássico entrevistão da Fox, devidamente resenhado pelo Jorge Murtinho em crônica anterior.
Foi ali que Jorge Jesus nos provou de vez que não é apenas uma cabeleira linda na multidão, e desfiou seu lirismo, no mesmo patamar de um Eça:
“Eu vivo acima do mar, no Rio de Janeiro como em Lisboa. Acordo e me inspiro com o cheiro do mar.”
“Cruyff me ensinou, durante meu estágio no Barcelona: Resus, acá ganhar de 1 a 0 não basta.”
“As grandes equipas do mundo não ficam a esperar duas horas em pé em aeroporto, expostas aos humores da torcida. Conversamos sobre isso com a diretoria e hoje o Flamengo só faz chegar, levantar voo, jogar.”
“Nos clubes do Brasil, há em torno do presidente um monte de gente dando palpite e atrapalhando o trabalho do treinador. No Flamengo graças a Deus pude contar com dirigentes que se fecharam, temos dois ou três diretores e mais ninguém.”
“Se eu mandasse na Fifa proibia para sempre jogos em relva artificial, que além do mais acaba com o joelho dos jogadores. Aquilo não é futebol nem nunca vai ser.”
Ah, Jesus amado! E, ao fim do programa, pudemos enfim entender o que seu biógrafo, o português Luís Garcia, declarou durante lançamento do livro: “Há um Jorge Jesus para fora e há outro Jorge Jesus para dentro…”.
Num dos melhores trechos da biografia, por sinal, o autor rememora um dia insano, quando o Benfica vencera um troféu importante. Deu-se uma aglomeração louca, todos pulando e sacudindo, e a polícia correu a interceder, abordando um dos dançarinos mais exaltados. Quando o camarada se acalmou e ergueu a cabeça, o policial se espantou: era Jorge Jesus.
Vocês podem discordar, mas eu não acredito num Mister que não sabe dançar.
Saúde, Jesus!
Deixando a pandemia de lado, é preciso falar de Jorge Jesus.
Consultei, para tanto, o Wikipédia.
Incrível, a carreira do gajo.
Como jogador, dizem que era meia, mas não teve o menor destaque.
Como técnico, praticamente só trabalhou em Portugal, aliás com EXTRAORDINÁRIO SUCESSO.
Convenhamos, com toda a sinceridade.
Se o futebol de Portugal, a nível de sua Seleção, encontra a sua melhor fase, bem ao contrário no tocante aos times.
O Sporting, que já foi o todo poderoso, na longinqua época do Travassos, é uma cariatura do passado.
Benica e Porto, ambos com títulos europeus, também nada mais conseguem na Champions League mais recentes.
JJ esteve à frente dos dois lisboetas, conseguindo bater todos os récordes da terrinha. Ganhou tudo, até um nacional com os Leões, provavelmente o último suspiro dos verde e branco.
O terceiro lugar de 1966, parece-me um acaso na seleção portuguesa. Um momento de ouro, com o Eusébio fazendo gols de toda forma, inclusive contra nós.
Atualmente, não. A seleção é consistente,não vivendo só do excepcional Cristiano Ronaldo.
A grande sensação da Premier League, no momento, é o jovem armador Bruno, que acabou de ser contratado pelo Manchester United e que está fazendo renascer o maior campeão inglês.
São inumeros os exemplos de alfacinhas bem sucedidos na Europa, em especial no melhor futebol do continente, a Inglaterra.
O Wolverhampton, que, quando era criança, chegou a ser campeão por mais de uma vez, é praticamente um time português e faz boa campanha, tanto que disputa a Liga Europa (está classificado para as oitavas) e credenciado para tentar a Champions.
Não posso negar que assisti jogos do Benfica do JJ pela Champions.
Frise-se, a bem da verdade, que os locutores brasileiros (não sei mais qual a rede de TV que fazia a transmissão) enalteciam o trabalho do Mister, para mim um desconhecido.
Fisicamente, igualzinho ao ^atual^, inclusive no comportamento, muito agitado, como sempre.
Uma passagem meteórica, embora vitoriosa pela Arábia Saudita, o que pouquíssimo representa no cenário mundial.
Em seguida, o nosso FLAMENGO, atingindo patamares absurdos.
De qualquer forma, quem é Jorge Jesus (Int.)
Um fenômeno ou um sucesso meteórico.
Não sei a resposta.
Sei, no entanto, que está conseguindo um êxito jamais visto.
Torçamos para que a parada forçada não nos traga prejuízos.
SRN
FLAMENGO SEMPRE
PS – em junho de 1990 estava em Lisboa. Em um domingo, a final da Copa foi exótica. Estrela de Amadora x Farense. 2 x 0 para o time da terra do JJ. Assisti pela TV do hotel. Amadora é praticamente um bairro de Lisboa. Sem querer os turistas, como eu, entram na cidade, colada à capital. Aconteceu comigo na segunda-feira que se seguiu ao jogo. Uma baita festa, para, quero crer, o único título da história do time que, atualmente, quando muito, disputa a segunda divisão. Lá tudo começou para o JJ.
E eu continuo perguntando a pegunta que não quer calar: com JJ tão à mão, como pôde a Federação Portuguesa de Futebol ter contratado Felipão para conduzir o escrete nacional?…
Ainda outro dia fiz o mesmíssimo comentário com um amigo rubro-negro.
Incompreensível.
Me causa uma certa incompreendida surpresa esta demora na renovação do contrato do JJ. Será realmente por causa de uma diferença monetária? Parece haver um certo medo entre todos nos em discutir mais abertamente o assunto. Medo da perda do glorioso técnico? A própria direção do Flamengo sempre menciona superficialmente como andam as negociações. Da logo a porra do dinheiro pro gajo e vamos em frente. O que não podemos eh arriscar perde-lo neste momento.
Salve primo Altamirando! Acho que vence em maio mesmo, daí a falta de necessidade de divulgar e fechar. Jesus já falou a amigos em Portugal que vai renovar. E o Flamengo não é doido de não chegar a um acordo, logo… Abraços, SRN e saúde
Grande e inesquecível SPP !
Tempo , tenho de sobra.
Confinado pela pandenia, nada faço.
Vontade, quase nenhuma.
Estou, tenho que confessar, extremamente abalado.
Com meus 82 anos, arrítimico, já tendo superado um edema pulmonar, um AVC, uma porrada de problemas, esta agora não esperava.
Ainda mais que meu tipo sanguíneo é o A, que os amigos do Ed, o 01, ou 02, ou 03, acabam de dizer que é o mais vulnerável.
O artigo é excelente.
Eça é o maior escritor da língua portuguesa de todos os tempos, com mil pedido de desculpas aos machadianos, amadianos e outro que tais, sejam daqui ou de além mar.
OS MAIAS é obra prima da literatura mundial ao lado dos Irmãos Karamazov, Madame Bovary, sem incluir Shakespeare que já seria covardia (nunca me situei bem com os clássicos greco-romanos).
JJ um fenômenos futebolístico a ser estudado em profundidade. Essa citação do super craque Cruyiff fez com que ganhasse mais uma porrada de pontos no meu conceito. Se Pelé foi, é e será sempre o craque dos craques, o holandês, da mesma forma, insuperável em inteligência e visão de jogo.
Dunlop, mais uma vez, de parabéns.
Confinadas e aporrinhadas e atemorizadas SRN
FLAMENGO SEMPRE
PS – não havia passado no túnel do Etôo com Eçá. Boa.
Fique bem, grande mestre. SRN!
Já escrevi alguns comentários esbanjando admiração holística pelo JJ. Grande homem em todos os sentidos, níveis e patamares. Insubstituível, sim. Ele simplesmente não deixou buraco aberto pra que alguém possa enfiar o dedo. Ocupou todas as vagas e não deu margem pra dúvidas ou reclamações. São raras, raríssimas, as pessoas que me emocionam pela grandeza e integridade. JJ me emociona.
srn p&a
Parabéns,Dunlop, por mais essa magnífica crônica, só não estou entendendo o acento agudo do Eça,
Amigo Xisto, isso foi apenas uma pândega (sem sentido), referência ao cântico “Obina é melhor que Etôoo”, largamente ouvido no bom e velho Maracanã, atualmente caladão. Se a torcida cantasse esse título, creio, seria com um belo acento no “Jesus é melhor que Eçáaaa…”.
Enfim, coisas da quarentena. Obrigado pela oportunidade de me explicar.
Excelente crônica, meu caro Dunlop. Digna de figurar nos anais que registrarão a passagem do Jorge Jesus pelo Flamengo.
SRN!
Serão áureos tempos!
Outra ótima nesses tempos de cólera. Que sirva de incentivo para a permanência do JJ no Flamengo. Beijos