Acordem, benfeitores do universo rubro-negro, que vou (tum tum tum) render tributo aos meus heróis.
O verso de samba-enredo anterior me ocorreu outro dia no portão E, a dois passos do paraíso, enquanto eu era prensado junto a centenas de irmãos flamengos que, inocentemente, procuravam entrar sem perrengue no Maracanã para ver um jogo da Libertadores da América. “Ué, quer conforto?”, bradou um alucinado, “Vira Botafogo, porra!”. Eu até quis rir, meu maxilar é que não encontrou espaço. Ser flamengo é ser herói, aprende-se na primeira roleta.
Foi na segunda catraca, no entanto, que se deu a magia, e pude presenciar um espetáculo memorável. Tudo porque o cartão-ingresso do Biel não passou, algum problema magnético, e me pus de lado a esperar, observando os menos pontuais dos 60 mil torcedores presentes sendo lançados para dentro do Mario Filho. E que deleite, que deleite.
A torcida rubro-negra é um espetáculo sem preço, talvez a maior atração turística carioca, ainda mais agora que fecharam o show da Plataforma no Leblon. E lá fiquei eu a admirá-la – os jovens casais, a excursão de suecos, alguém com um bebê de colo, velhos malandros como, olha ele ali, o seu Almyr, 70 anos de arquibancada, 200 operações no coração, joelho, quadris, praticamente um Robocop a encarar, quase sempre sozinho, a rampa do Mario Filho.
Busquei me posicionar melhor para admirar a procissão e, enquanto três zelosos policiais baixavam o cacete num rubro-negro (mais negro que rubro), notei um senhor que vinha, célere, impulsionando a própria cadeira de rodas, Manto Sagrado orgulhoso no peito, ingresso na boca para mostrar na roleta. (Olha aí Adidas, não cabe lançar uma camisa do Flamengo com bolso?)
Logo atrás dele, preocupados mais com a hora do jogo do que com o furdunço e os rojões lá fora, surgiram no pique três adolescentes esbaforidos. Ela, ajeitando a calça; ele, conferindo o ingresso; e um terceiro, fazendo tudo isso ao mesmo tempo e ainda por cima empurrando o chão para mover seu skate, já que tinha algum tipo de paralisia nas pernas. Venceram a roleta, berraram um “Mengôo” e, mostrando entrosamento, começaram a subir a ladeira juntos, com um dos amigos de motor de popa do skate, aceleradíssimo.
Era tamanho o meu encanto pela nossa torcida, pelos jovens e velhos corações desconhecidos que passavam, que tive dois estalos cruciais ali na hora: 1) A maior força de um clube de futebol segue em seus torcedores anônimos; e 2) Cadê o Biel, caceta?
Subi, sozinho e atrasado, rumo ao setor norte, e inspirado pela firmeza e fé da magnética, comecei a listar mentalmente meus heróis prediletos da epopeia rubro-negra até hoje.
“Ah, moleza: é Zico e mais dez”, disse eu para mim mesmo, provocando uma treta. Não, primeiro é preciso definir bonitinho o que é ser herói. “Herói”, ensinou Luis Fernando Verissimo, “é o deus democrático, eleito pelos seus semelhantes, ao contrário do deus clássico que já nasceu deus”.
Meus heróis a seguir, portanto, são aquela “gente simples que ficou famosa e voltou a ser simples” (copyright Sidney Garambone); personagens que não chegaram ao olimpo flamengo habitado por deuses e semideuses como Adriano, Petkovic, Rondinelli e o ungido esquadrão de 1981. Mas que também nos emocionam até hoje.
* Valido, o febril
É talvez meu herói preferido. Ex-Boca Juniors, Agustín Valido nasceu em 31 de janeiro de 1914 e terminou seus dias recebendo tapinhas nas costas e chopes de graça nos botecos do Leblon. “O senhor sabe que subiu no ombro do Argemiro para cabecear, né?”, ouvia dos vascaínos. E ria, o gaiato. O gol consagrador foi o do tri estadual de 1944, aos 41 do segundo tempo, mas ele retornara de aposentadoria um jogo antes: no épico Flamengo 6 a 1 Fluminense que mexeu até com nossos soldados na Itália, pelo rádio. O artilheiro parara de jogar em 1943 a pedido da mulher recém esposada, mas acatou o chamado, jogou a final com 39 de febre e marcou seu maior gol, festejado há 75 anos. Em 1995, em homenagem na Gávea, Zico não titubeou ao vê-lo, e ajoelhou-se aos pés do velho ídolo.
* Gustavo, o pioneiro
Cracaço com nome de barão ou de cachorro basset, Gustavo Adolfo é o herói inaugural – o autor do primeiro gol flamengo, a 3 de maio de 1912. “Ainda está vivo na minha retina o momento em que marquei esse tento. Nunca me esqueci que, mal entrou a bola, uma multidão, das varandas e janelas das casas de onde se via o campo do América, prorrompeu em vivas”, disse Gustavinho a João Antero de Carvalho, no livro “Torcedores de ontem e de hoje”. O pioneiro, que no futuro seria banqueiro e presidente do clube (foi quem vendeu Leônidas ao São Paulo, tendo recebido ameaças de morte e o escambau pela negociação) dizia que nada em sua vida o emocionara mais que aquele gol. “Senti-me como um herói lendário. Para mim, vencera sangrenta batalha e já me via desfilando com uma coroa de louros, montando belo corcel, tal qual Napoleão nos seus melhores tempos! Jogando pelo Fluminense, marquei, é verdade, muitos tentos; nenhum, porém, teve o sabor daquele que foi escrito em letras de ouro na história de um clube de mundial renome…”
* Gilberto Cardoso, o sentimental
O escritor Pongetti definiu: “Gilberto Cardoso foi vítima de um acidente sentimental. Os cardiologistas podem dar um nome complicado ao acidente reduzindo-o a um mero caso fisiológico. Eu acho que foi amor ao rubro-negro num coração insuficiente, coração de qualquer outro ser humano. Doença não havia: havia falta de espaço”. Não foi numa final de basquete, mas aquele Flamengo e Sírio em 25 de novembro de 1955 foi de fato eletrizante. Restando três segundos, Guguta arremessou quase do meio da quadra e virou para 45 a 44. O presidente, jovem aos 49 anos, disfarçou, deu entrevista e saiu do Maracanãzinho dirigindo seu rabo de peixe. Morreu a caminho do Souza Aguiar. Seu velório juntou 50 mil pessoas em caminhada, e após o tri estadual, com direito a 4 a 1 no América (quatro gols do Dida), uma multidão pulou o muro do São João Batista para botar a faixa no túmulo do amado dirigente. Se não for para morrer assim, nem me chama, Zé Maria.
* Baiano, o remador
É um marinheiro o primeiro herói flamengo. Como atesta o novíssimo livro de Roberto Assaf, “Seja no mar, seja na terra”, os “seis jovens remadores” na realidade eram sete – o último era justamente o bravo Baiano, ou Joaquim Leovigildo dos Santos Bahia para os não íntimos. Era domingo, 6 de outubro de 1895 – antes portanto da fundação do clube – e a embarcação Pherusa virou com seus sete célebres tripulantes, quando ia de Ramos à praia do Flamengo. Baiano, bom nadador, deixou os companheiros agarrados ao casco e foi buscar socorro, singrando mais de dois quilômetros no braço até São Cristóvão. Como Assaf conta, variados barcos passaram pelos ilustres náufragos sem socorrê-los, o que mostra que desde o século XIX o Rio já era cheio de patifes.
* Jonatha, o menino do Ninho
Chamai-me de sentimental, mas ao ver a figura do zagueirinho Jonatha Cruz Ventura, 15 anos, correndo pelo Maracanã no último título estadual, com os longos bracinhos finos ainda chamuscados da tragédia do Ninho do Urubu, vi ali um pequeno grande herói, pronto para figurar no panteão rubro-negro. Não sei se, com seus dois metros de altura e seu coração marcado pela perda dos dez amigos, ele será um grande jogador, nem estou ligando para isso. Sei que, quando o calor insuportável e a fumaça escura tomaram conta do dormitório, e nosso heroico segurança arrombou a janela para resgatá-lo, Jonatha não foi em direção à salvação, mas voltou-se para a cama onde seus amigos estavam, ato de bravura insuspeitada que quase lhe custou a vida. Foi puxado para fora, dos braços da morte, quando já desmaiava. Herói pra caralho.
* Anselmo, o vingador
Quem melhor exaltou José Antônio Cardoso Anselmo Pereira, nascido em 20 de março de 1959, foi Luiz Antonio Simas, em crônica sobre a Libertadores de 1981. No jogo de volta no Chile, como conta Simas, “em um campo cercado por carabineiros da ditadura chilena, um zagueiro do Cobreloa, Mario Soto, distribuiu pancadas de fazer corar até o general Pinochet”. Houve o terceiro jogo, no Uruguai, no estádio Centenário. Zico meteu dois e o camisa 25, que completou 60 anos outro dia, saiu do banco para entrar para a história. Conta, Simas: “O técnico Paulo Cesar Carpegiani chamou Anselmo, o centroavante reserva, e deu a ele a instrução mais rápida da história do esporte bretão:
– Nem aquece. Entra lá e dá uma porrada no cara.
Com impressionante disciplina tática, Anselmo fez exatamente isso 30 segundos após entrar em campo. O vingador rubro-negro deu um cruzado de direita em Mario Soto e levou o chileno a nocaute. (…) Tenho sobre essa porrada uma tese irrefutável – ali, graças a Anselmo, as ditaduras latino-americanas que assombraram o continente durante a Guerra Fria começaram a desabar…”.
* Lê, o tranquilo
Um herói de tintas divinas nasce nas brigas desiguais, e aquele Flamengo x Palmeiras de 20 anos atrás era uma batalha desse tipo. Sob comando do generalíssimo Felipão, eles tinham Marcos no gol, Arce, Galeano, Júnior, César Sampaio, Alex, Zinho, Paulo Nunes, Euller e Edmilson, e pouparei você do nosso time. No primeiro jogo da final da Mercosul 1999, 4 a 3 para o Flamengo. No segundo, 3 a 3 em São Paulo e enfim um grande título continental depois de 1981. Méritos do imenso Carlinhos, que em sua última substituição lançou o camisa 22 Leandro Coelho, que substituía Romário. “Lê”, 20 anos, esbanjou frieza e aos 38 da etapa final, levou a bola, tabelou com Reinaldo, tocou magistralmente na saída de Marcos e parou em campo, atarantado, achando que tinha matado no Rio o pai de coração frágil. “Chorei copiosamente, foi o gol da minha vida”, recorda o ex-meia, que cultiva novo sonho: ver o filhão João Gabriel, da base do Flamengo, ganhar um dia a Libertadores – com um gol heroico, quem sabe.
* Angelim, o humilde
Como uma nação que teve xerifes do naipe de Domingos da Guia, Reyes, Mozer e Aldair tem tempo para reverenciar o esforçado zagueirão Angelim, nascido em 26 de novembro de 1975? Primeiro, por suas frases: “Professor, quero treinar mais”, dizia sempre, ou o mantra “A minha vaidade é ver o Flamengo ganhar”. Angelim é o herói dos gestos simples e cabeçadas eternas, como a do Hexa em 2009. Um Magro de Aço e chinelos de dedos, a eterna estampa da humildade rubro-negra.
* Jaime e Laura de Carvalho, os chefes da alegria
Para dar uma ideia do gigantismo desse casal, basta dizer que não existiria a Raça Rubro-Negra, não existiria um Claudio Cruz nem um Moraes sem Jaime de Carvalho e Laura. Jaime foi o fundador da primeira torcida organizada do Brasil, quiçá do planeta, quando em 1942 pegou uns instrumentos, vestiu a camisa listrada e saiu por aí. Dona Laura era quem organizava a bagunça, que começou com 20 integrantes, e fazia as camisas, faixas e bandeiras da Charanga Rubro-Negra, como a turba foi apelidada por Ary Barroso. Antes de Jaime, torcedores se vestiam de ternos nos jogos, e só faziam barulho quando o time atacava – silenciavam quando vinham os oponentes. E os espectadores chegavam tranquilamente de bondes aos jogos. Jaime e Laura mudaram a história: lideravam a torcida em grandes caminhadas ao estádio, o que certamente ajudou a aumentar a popularidade do Flamengo na cidade. Detalhe: na Charanga, era proibido gritar ofensas e palavrões contra os jogadores – só valia torcer a favor. Grandes tempos.
* Vitinho, o abnegado
Poucos perceberam, mas Vitinho protagonizou, no Uruguai, um dos gestos de heroísmo mais sublimes da história do futebol rubro-negro. Um ato de profundo desprendimento e abnegação. O Flamengo precisava do empate contra o Peñarol para se classificar, e cumpria seu papel com a defesa sólida e uma dezena de chances criadas no ataque. Com um a menos em campo, o time se doava por inteiro no segundo tempo, num jogo coletivo de rara frieza e qualidade do Flamengo fora de casa – uma partida capaz de mudar o patamar do time na Libertadores. Foi quando Cuéllar quase pôs tudo a perder: aos 47, deixou Vitinho livre, sozinho para marcar, em lance fácil para o atacante, como ele provou contra a Chapecoense. Enquanto corria o campo todo, Vitinho pensou quatro coisas: “1) Se eu meto esse gol, o lance será repetido em tudo que é canto e vão vender o Cuéllar, estamos lascados; 2) Se a bola entra, ninguém vai falar da nossa zaga, da luta coletiva do escrete, e serei eleito herói num jogo que não mereço – e pior, alguém vai acabar fazendo mais uma crônica mal escrita sobre os salvadores da pátria rubro-negra; 3) Tem muito velhinho na nossa torcida, gol aos 47 não costuma terminar bem… 4) Olha o goleiro saindo, coitado. Vou marcar, que se dane… Mas imagina se dá briga com os uruguaios, aqui no campo e lá na arquibancada. Isso pode ser um problema para nossa torcida aqui presente.” E brilhou, tocando a bola magnificamente para escanteio, lá quase na bandeirinha, levando o árbitro a encerrar a partida e todos os flamengos comemorarem, juntos, unidos, sem falso individualismo e parcos brilhos solitários. Vitinho, o último grande herói individual da nossa história.
E para você, leitor humildão? Quem foi o seu maior herói?
Grande mestre,
Belo texto, mais uma vez!
Lendo seu texto me veio à mente mais um grande ídolo rubro negro dos tempos doídos: Iranildo Chuchu e suas metidas de bola, um dos jogadores mais verticais que vi em toda minha história rubro negra!
SRN
Bela lembrança. Outro dia estava vendo algum programa, e descobri, 75 anos depois, a origem do apelido do pequeno meia. Parece que o Messi de Igarassu, Pernambuco, curtia cantar no vestiário um sucesso do Mamonas Assassinas. Foi o Romário passar pelo box e ouvir “Meu chuchuzinho…”, e o apelido pegou, com ajuda, claro, do impagável Apolinho. SRN
Outra ótima crônica. Parabens pelo tema e pelo texto. Falar do Mengão é falar desses heróis todos e de mais alguns, muitos por aí a fora. E cada flamenguista tem o seu cativo