Por Rodrigo C. Robredo*
Na minha família era assim: meu avô era tricolor, mas não ligava tanto para futebol. Quem gostava mesmo era minha avó. E ela era completamente apaixonada pelo Flamengo.
Os dois vieram da Bahia para o Rio ainda jovens, acho que tinham menos de 20 anos. Isso na década de 1930. Eu não sei explicar o amor da minha avó pelo Flamengo. Nunca me preocupei com isso e nunca perguntei. É bem verdade que motivos não faltavam: ela viveu os tempos de Domingos e Leônidas. A era do rádio, em que as partidas do Flamengo despertavam paixões em todo o Brasil, no embalo da gaitinha do Ary Barroso. Depois vieram os tricampeonatos, Valido, Zizinho, Dida, o Maracanã… até chegar à geração de Zico. Pensando bem, por que diabos ela não seria Flamengo?
O certo é que minha vó Maria foi uma flamenguista fervorosa. Lembro das férias na casa dela, quando eu devia ter uns 8 ou 9 anos. Na cabeceira da cama estava o rádio-relógio, encarregado de transmitir os jogos do Flamengo. Eu também acompanhei alguns jogos naquele radinho, honrado por compartilhar momentos que eram tão dela e ao mesmo tempo de tantos milhões Brasil afora. Era uma espécie de iniciação, de batismo, e eu entrava numa etapa mais avançada na vida de torcedor, quando já não bastava ver os jogos que passavam na televisão, ou ficar sabendo o resultado depois. Lá estava eu, Flamengo, começando a te seguir a todo lado.
Aos poucos, fui me familiarizando com a narração vertiginosa dos locutores. E a mágica aconteceu. Já visualizava os lances que eles descreviam, e imitava as jogadas distribuindo chutes e lançamentos. Ao som do rádio, jogava um “air futebol” raiz. E também tentava dar a minha contribuição para o time. Se vinha cruzamento, eu me antecipava para cabecear, na esperança de que o feitiço funcionasse ao contrário e, lá do outro lado, o nosso atacante fizesse o gol. Às vezes dava certo. Eram os anos 1980.
Uma relíquia da avó que guardo com imenso carinho é um LP chamado “Sempre Flamengo”, que eu ouvi muito quando era garoto. No lado A, traz raridades das décadas de 1930, 40 e 50. Sambas de Wilson Batista e Geraldo Pereira. Um deles, “Coisas do destino”, tem as vozes dos campeões de 1942, Nandinho, Pirilo e Vevé. Diz assim: “Ai, ai, são coisas do destino / Sou rubro-negro, meu patrão é vascaíno / Ai, ai, esse emprego eu vou perder / Mas deixar de ser Flamengo, não, não pode ser”.
O lado B tem gravações mais novas, ou menos velhas, com gente como Moraes Moreira, Jorge Ben (que ainda não era Jor), João Nogueira e até o tricolor Chico Buarque emprestando seus talentos ao Mais Querido. É um disco sensacional. Mas o especial mesmo, no meu exemplar herdado, está do lado de fora da capa. São as assinaturas de vários campeões mundiais de 1981. A história que sei é que minha avó deu um jeito de pegar os autógrafos na Gávea. Estão lá Leandro, Lico, Andrade, Nunes, Marinho e o técnico Carpegiani. Estão também Zico e Sandra. Tem até a cantora Aracy de Almeida, que no disco interpreta, com voz de passarinho, a preciosa “Memórias de Torcedor” (”Faço sacrifício / Venho lá do Realengo / Uma vez Flamengo, sempre Flamengo…”). Gravação de 1946.
Apenas uma assinatura segue sendo um mistério, nunca consegui identificar. Eu fico imaginando minha avó pegando esses autógrafos. Já com mais de 60 anos, uma senhora elegante abordando os craques com seu disquinho na mão. Não devia ser algo muito comum para eles.
Quando eu morava em Brasília, e a avó no Rio, nós tínhamos um ritual. A gente se falava pelo telefone depois dos jogos importantes. Eu sabia que ela tinha acompanhado, e ela sabia o mesmo de mim. E tome resenha, eu ainda muito criança para desenvolver melhor o assunto, mas sempre curtindo aquela conversa. “Você viu que golaço do Zico?”; “Como é que pode o Flamengo perder esse jogo?!”; ”Vó, a gente vai ser campeão!”
O jogo que mais me marcou, desses que comentamos pelo telefone, foi a semifinal do Brasileiro de 1987, no Mineirão. Eu tinha 10 anos e vivia vestido com uma camisa do Flamengo, número 9, do Bebeto. Assistir àquele jogo pela televisão foi uma das coisas mais nervosas da minha vida.
No primeiro tempo, Flamengo 2 a 0, Zicão, de cabeça, e Bebetinho, na categoria. No segundo tempo, pressão e empate do Atlético. Tensão total. Até que Renato Gaúcho arrancou do meio de campo e foi parar dentro do gol: 3 a 2, Mengão classificado para a final. Quando acabou, eu saí correndo da sala e me tranquei no quarto para chorar e extravasar a emoção. Eu não sabia que o futebol podia fazer isso, que o Flamengo podia fazer isso. Mais uma etapa inaugurada na minha vida de torcedor.
Eu não lembro direito os detalhes da conversa com a minha avó. Só sei que a gente se falou no telefone e que era impossível esconder o meu estado. Ela estava se divertindo e eu quase morrendo. E eu perguntava, mesmo sabendo a resposta: “Vó… você viu?”
Essa relação tão marcante com a minha querida avó flamenguista teve também um capítulo de Natal. Quando criança, eu não costumava presentear ninguém. Mas, naquele ano, fiz diferente. Talvez tenha sido na saída do Maracanã, em algum jogo em que fui levado pelo meu irmão, que compramos uma bandeira, dessas vendidas na rua. Não era oficial e nem fazia esforço, vinha dividida em três listras verticais, uma vermelha, uma preta e uma branca no meio. Pra arrematar, um escudo do Flamengo e uma listagem de títulos. Acho que nunca vi minha avó tão contente. A fotografia permanece nítida na minha memória: ela agitando a bandeira, sorriso no rosto, lenço na cabeça, ainda sem ter se arrumado para a festa do Natal.
Hoje eu procuro essa foto em todos os armários da família, mas não encontro. Deve ter se perdido em alguma mudança. Para mim, é a imagem definitiva da minha avó Maria. É tão presente e sólida como esse laço que a gente criou e que não se desfaz nunca, eu, ela e o Flamengo. Quando tem jogo importante, eu ainda me permito fazer uma ligação para a minha avó no meu pensamento. Eu digo a ela: “Vó… você viu?” E acima de tudo: “Vó, obrigado”.
* Rodrigo C. Robredo é flamengo, jornalista e ladrilheiro.
Caceta !
Duas das minhas melhores experiência rubro-negras ficaram aqui descritas, pelo Rasiko e pelo Áureo.
Naquela do Rasiko, quando já tinha 11 anos, poderia acrescentar o que foi fantástico para mim, que não chupei laranja, nem fiz ou joguei pipi nos companheiros.
O gol do Jair, o Jajá de Barra Mansa, cobrando uma falta do meio da rua e consolidando a nossa espetacular vitória sobre o time inglês que, ao estrear no Brasil (onde nunca mais voltou, salvo engano), encaçapou o Fluminense por um balaio de CINCO.
Além do mais, estava bem na reta da cobrança, por trás, podendo ver o que, até então, pensava ser impossível.
O ziz-zag da bola.
A bola saiu dos pés do Jair como um foguete louco, com força total, matando o pobre goleiro inglês, que seria, é o que diziam, também o da própria seleção.
Algo fantástico e inenarrável, por mais que me esforce.
Não foi, no entanto, a minha primeira experiência inglesa.
No ano anterior, veio ao Brasil um outro time da ^loura Albion^ (epa, em homenagem ao Xisto e seus mocassins), de prestígio duvidoso, como permanece até nossos dias, sempre lutando para não cair para a segundona (que lá, atualmente, chamam, no melhor do cinismo britânico, de Campeonato).
À época, era mesmo da Série B.
Tratava-se de um time para mim quase impronunciável, o Southampton.
Camisa do Bangu para rimar com o futebol do clube de Moça Bonita naquele ano de 1948, antes de entrar o dinheiro do Silveirinha, logo passados apenas dois anos, e, bem mais tarde, o do jogo do bicho, via Família Andrade.
Pois bem, lá fui eu com meus pais e meu irmão, numa noite de meio de semana, para o estadinho de General Severiano, suficiente para o tamanho do espetáculo.
Os inglêses haviam apanhado pra burro, até então, mas, bem ao contrário do que viria a acontecer contra o Arsenal, nos sapecaram.
Profunda decepção, que serviria como ^trailer^ para jogos atuais como, talvez o pior de todos, aquele contra o América mexicano, do gorducho atacante paraguaio que me fez perder algumas noites de sono.
Saudosas SRN
FLAMENGO SEMPRE
ERRATA
O jogo foi disputado mesmo em São Januário.
Fiquei na dúvida e fui consultar o Fla-Estatísticas.
Pois, Carlos, em sal de coisas
funda-se a poesia
Nem sei mais que poeta escreveu esses versos em homenagem a Carlos Drummond de Andrade, mas sal de coisas é isso aí que você descreveu que eu fui tentar desencavar de um recanto qualquer dos meus exauridos neurônios. Me lembro, entre poeiras e teias de aranha, desses dois times ingleses, nós perdemos para o Southampton, acho de 4 a 2, me lembro também das várias pronúncias que ele ganhou por aqui, muitas até sofisticando tanto o inglês que deveria causar fricotes ( pra ficar com palavreado de então) na rainha, acho até que já era essa velhota que anda por aí. Uma outra coisa que nós brasileiros levávamos na galhofa era o comprimento dos calções, que batiam pelos joelhos, para gáudio da rapaziada, os nossos craques usavam calções curtinhos e os mais “mascarados” (eles existem até hoje, agora com outros nomes)davam ainda um jeitinho de encurtá-los mais dos lados ( nosso Berrio gosta de usar assim), curiosamente, depois os calções encompridaram e as gracinhas terminaram. Até hoje quando eu vejo o campeonato inglês, o que o faço com muita frequência como todos que gostam de futebol, torço pelo Arsenal e também pelo “Sôuzamptom”.
1949. Estreia do grande goleiro paraguaio Sinforiano Garcia no Flamengo em São Januário contra o Arsenal de Londres.
Foi também a minha estreia em estádios aos 5 anos.
Meu pai deu as dicas: “Quando gritarem ‘olha a laranja!’ você abaixa a cabeça porque jogam o bagaço da laranja; quando gritarem ‘olha o mijo’, você levanta pra deixar o mijo passar. Entendeu?”
Entender, entendi, mas na hora troquei tudo e cheguei em casa com as calças curtas fedendo a mijo e a camisa lambuzada de laranja nas costas.
Uma vez Flamengo, sempre Flamengo.
Obrigado, Digão, pelo belo texto.
Caceta, eu tenho uma puta inveja de todo mundo que vem aqui contar histórias do Flamengo, cada uma mais emocionante que a outra, e eu não tenho nenhuma pra contar, quer dizer, bonita, só tenho uma que eu quero esquecer, mas não posso, volta e meia sonho com ela, já gastei um porrilhão de grana com analista e não consigo me libertar. Mas é guerra, é? Só sei que foi num Fla x Flu, nem sei o ano, bloqueei totalmente, Maracanã lotadíssimo como na época era comum, eu todo prosa, cheiroso, sapato novíssimo, feito sob medida, estreando naquele dia, depois de assistir ao jogo ia me encontrar com minha namorada, minha mulher hoje. Queria sair um pouco antes do chamado apito final e assim o fiz, só que calculei mal, quando estava de saída já no túnel de acesso às arquibancadas, naquele tempo um cubículo que mal dava pra três pessoas, o jogo acabou e a multidão, para cortar caminho, desabou sobre mim, corri para me livrar da manada, quando cheguei no anel (ainda existe?), felizmente, sem um arranhão e olhei para meus pés, tinha perdido um pé de meus belos mocassins, tentei encontrá-lo, adiante, uma turma jogava pelada com ele, quando cheguei perto o sapato havia sumido definitivamente. Olhei para o meu pobre pé sem sapato, eu todo cheiroso, todo bonitinho, um pé calçado e outro descalço, é doloroso uma pessoa descalça de um pé só, perdida na multidão, é preferível ficar nu logo de uma vez. Vontade imensa de chorar. O resto da história, ora o resto .
Eu ando tão desapontado com esse atual diretoria, que o meu amor pelo Flamengo estava trancado a sete chaves no meu coração.
Entretanto, após a leitura dessa emocionante narrativa, como num passe mágico, o meu amor floresceu.
Creio não haver um flamenguista que não tenha histórias guardadas na memória. Eis uma das minhas:
Ano de 1985, triangular final entre Flamengo, Fluminense e Bangu, pela disputa do Campeonato Carioca.
Mais de 90 mil torcedores para assistirem ao Fla x Flu, no Maracanã.
Desde o apito inicial, o Flamengo melhor em campo, dominando as ações e criando inúmeras oportunidades de gol, até com uma bola na trave numa falta cobrada por Mozer.
Mas, como normal ainda hoje acontecer, levamos um gol de bola parada. Cobrança de falta, Washington de cabeça, um a zero. Quase no final do primeiro tempo.
Eu era tão assíduo ao Maracanã, que até abrira uma conta num bar do anel superior, para poder beber fiado. Eu era figura carimbada.
Porém, de centenas de jogos no Maracanã, este foi o que mais me emocionou.
No segundo tempo, o Flamengo jogou praticamente no campo do adversário. Cantarelli de zagueiro. O Fluminense, encolhido na sua insignificância, resistia só Deus sabe como ao nosso avassalador ataque. A leiteria tricolor estava aberta e Paulo Vitor fazia milagres.
Mas, naquela noite, os deuses do futebol resolveram não premiar a mediocridade. E eis que ao 43 minutos, Leandro acerta uma bomba da intermediária, empatando a partida.
Lembro-me nitidamente, eu ajoelhado na arquibancada, chorando copiosamente, sendo abraçado por todos que me cercavam.
Obrigado, Ladrilheiros por me fazer lembrar que essa diretoria passará, mas o Flamengo não, porque eterno.
Sempre Flamengo.
Obs.: no link abaixo, os melhores momentos desta partida:
https://www.youtube.com/watch?v=FqnlTiyKiG4
Aureo, sensacional o seu comentário. A vontade de escrever sobre o Flamengo veio com a tragédia do Ninho, que mexeu muito comigo. Mas a falta de indenização me deixou com raiva e com vergonha, e eu fiquei esperando um momento melhor, que ainda não veio. Até que decidi que é importante a gente falar mesmo. Mostrar do que é feito o Flamengo, que ele é “puro amor”, como diria Zé Lins do Rego, e que paira muito acima de qualquer atitude mesquinha de qualquer diretoria.
Sobre o jogo de 85, eu estava lá! Chutaço do Leandro, bola no travessão, nas costas do Paulo Vitor e no filó. E, se não me engano, o Fluminense seria campeão naquele jogo, não fosse esse gol. É uma das minhas primeiras lembranças do Maraca, faz parte desse caldeirão da infância colocado no texto.
Grande abraço e SRN!
rodrigo c robredo,
eis os fatos:
A fase final do Campeonato Carioca de 1985 foi decidida em um triangular, disputado entre Flamengo, Fluminense e Bangu.
A primeira partida, dia 11/12, quarta-feira, foi exatamente aquele Fla x Flu. Se o Flamengo fosse derrotado, praticamente daria adeus ao título. O empate manteria a possibilidade.
Ocorre que perdemos o jogo contra o Bangu, no domingo seguinte, pelo placar de 2 x 1. E assim ficamos fora da disputa.
Na partida final, Fluminense 2 x 1, aconteceu mais uma roubalheira, entre tantas outras, a favor do tricolor.
O Bangu jogava pelo empate. Aos 46 do segundo tempo, Cláudio foi agarrado acintosamente por Vica dentro da área. José Roberto Wright não assinalou a penalidade, alegando que já tinha apitado o fim da partida, mas cujo trilar ninguém ouviu até hoje.
Um forte abraço e
SRN!
* Claudio Adão
Belo texto, muito tocante, o Fla é grande por isso: amor sincero, que une as famílias e passa por gerações. Parabéns Rodrigo!
Serjão, big brother, vc é muito parte disso. Tamo junto.
Tocante, Robredo. Fui criado com vó, ela era assim um pouco como a sua, mas o rubro-negrismo de raiz, como esse que vc aprendeu, conheci com tios e tias avós.
Me identifiquei bastante nesse lance de sair chorando depois de um gol épico ainda criança. A diferença é que comigo a coisa aconteceu naquele gol do Marquinhos contra o São Paulo no Morumbi. Depois disso, o Flamengo se entranhou em mim pra nunca mais sair. Valeu!
Valeu vc, Marcos. Com certeza muita gente tem histórias como as nossas. Isso é que faz a grandeza desse clube.
abs