TEXTO DE MARCELO DUNLOP
Diretor do documentário “Flamengo Paixão” (1980), o cineasta David Neves mantinha uma frase engatilhada sempre que ia a um vernissage ou a uma pré-estreia de conhecidos. Quando o incauto pedia sua opinião sobre o que acabara de ver, David disparava: “Que pedrada!”. E ia embora. Não perdia o amigo nem a piada.
Desde o jogo na Argentina, ando citando o falecido diretor a torto e a direito, sempre que passo na portaria e o Araújo me pergunta se vi o empate no fim de semana, ou se o “Família”, guardador do Baixo Gávea, vem reclamar da última atuação do Flamengo. Se ainda não dá para ver as partidas sem se irritar, melhor nem comentar.
Éramos perto de mil rubro-negros em Buenos Aires, um frio tamanho que o notório torcedor Moraes não tirava as mãos do bolso do bermudão, as canelas resistindo bravamente. Tínhamos tudo para sair do cinzento bairro de Bajo Flores, local do estádio do San Lorenzo, e varar a madrugada na primeira bodega aberta, felizes da vida, entornando vinho às pipas. Em vez disso, enterramos nossas chances na Libertadores num estádio humilde, erguido por singelos 15 milhões de dólares, propinas incluídas provavelmente.
O poeta argentino Jorge Luis Borges certa vez disse: “La derrota tiene una dignidad que la ruidosa victoria no merece”. Não disse isso para mim, admito, e se ele dissesse na madrugada daquele 17 de maio, provavelmente escutaria um senhor passa-fuera. Borges por certo não viu as últimas derrotas do Flamengo na Taça Libertadores. Derrotas sem dignidade alguma, em que as lições são pouco ou nada aprendidas.
A indignidade era tanta no maldito estádio que, em meio à ruidosa festa dos até então amuados argentinos, um torcedor do San Lorenzo, não muito longe da faixa em homenagem ao Papa Francisco, célebre figura nascida ali perto, decidiu comemorar dançando em nossa direção com sua vasta bunda branca de fora, dançando uma rumba tosca e cruel. Não sei se o Papa abençoaria aquela bunda, não. Para nós, de todo modo, não teve graça.
Outro dia um pequeno clube da Inglaterra de nome Huddersfield voltou à primeira divisão depois de 45 anos, sem orçamento, craques nem nada. Seu capitão, Tommy Smith, tentou traduzir o sentimento em palavras: “Essa conquista significa o mundo para todos nós. Houve uma conexão impressionante com o time por parte de todos, jogadores, torcedores, diretoria, presidente.” Postados ali naquele frio do cão, sendo xingados enquanto as tropas de choque riam, casais, velhos, crianças, um doido todo endividado que comprou a passagem Rio-Buenos Aires no dia do jogo, nos pareceu que o Flamengo hoje padece de uma grave falta de conexão. Se não entre a torcida e a equipe, ao menos entre a nossa defesa e o ataque.
“Parece-me fácil viver sem ódio, coisa que nunca senti, mas viver sem amor acho impossível”, disse também o sábio Borges, o que talvez explique por que voltaremos às arquibas logo logo (por enquanto tá doendo). Em breve talvez até perdoemos aqueles jogadores e a comissão técnica que nos deixaram para trás na Argentina, encarando aquele frio, e aquele rego branco do vizinho do Papa. Talvez não, dependendo das novas surpresas que aprontem na Sul-Americana e no Brasileiro.
Por enquanto, ainda não tirei da cabeça o mais famoso dos tangos argentinos, que também fala sobre sorte e azar no jogo, e que continuo cantarolando baixinho desde Buenos Aires: “Por uma cabeça / De um nobre potro / Que justo na raia / Afrouxa ao chegar…”. Que pedrada.
PS: Apesar de meu nome constar do cabeçalho, logo acima da caricatura de Jorge Luis Borges, esse texto é do nosso convidado muito especial MARCELO DUNLOP. Quem me dera escrever bem desse jeito.
Corujice a parte, que belo texto! Até desanuvia um pouco nossa desclassificação. Aguardamos outros, mas nas vitórias.
SRN!!!
Excelente texto! Parabéns, caro Marcelo Dunlop, mesmo que carregado da tristeza pela eliminação, como comentou o Red and Black “A dor persiste e o passado é irreversível.”
Como eu consigo me esquecer com uma certa facilidade das mágoas, das tristezas e das derrotas do passado, sofro menos.
Eu procuro não me esquecer do passado somente porque “quem não recorda o passado está condenado a repetir os mesmos erros.”
E é esta última frase que eu gostaria que o Zé Ricardo tivesse hoje fixado na parede do seu quarto.
SRN!
Que pedrada!!!
Belo texto, que nos ajuda um pouco a sarar as feridas que vez por outra ainda latejam.
A dor persiste e o passado é irreversível. Contudo, é inaceitável como os vexames internacionais se sucedem, com as tragédias latino-americanas mudando apenas de cenário e de enredo, tendo sempre o Flamengo como a personagem que morre no final.
Tomara que aprendamos um dia.
Saúde e Sorte
´Muito bom texto, seguido de comentários do mesmo nível (em tempo – que saudades do Alvinho, de sua esposa meio amalucada e extremamente talentosa e das reuniões que promovia – entrada livre – na sua casa de Ipanema. Já escrevi há tempos atrás. ^As amargas, não^, durante um bom tempo da minha adolescência, foi meu livro de cabaceira).
Em assim sendo, restrinjo-me aos meus limites, até porque estou com fixação (admito que doentia) no momento político extremamente perigoso que nos envolve a TODOS, queiramos ou não.
Recomendo aos menos preocupados que procurem ler – é muito fácil obter o texto (em inglês) na Internet – o artigo publicado no The Guardian sob o título ^ Ôperation Car Wash – the biggest corruption scandal in history (INT)^.
Preocupadas, mesmo que ainda esperançosas, SRN
FLAMENGO SEMPRE
PS – a velhice é foda. Esqueci o nome da esposa do Álvaro Moreyra. Tenho certeza, apenas, que começava com a letra E.
“Eugênia Álvaro Moreyra (6 de março de 1898 — 16 de junho de 1948) foi uma jornalista, atriz e diretora de teatro brasileira. De personalidade anticonvencional e transgressora, foi uma das pioneiras do feminismo e uma das líderes da campanha sufragista no país. Ligada ao movimento modernista brasileiro e defensora de idéias comunistas, foi perseguida pelo governo Vargas, chegando a ser presa acusada de participação na Intentona Comunista. Casada com o poeta e escritor Álvaro Moreyra, desempenhou com ele papel importante na renovação do setor teatral brasileiro, organizando campanhas culturais de popularização e trabalhando como atriz, diretora, tradutora, declamadora e posteriormente presidente do sindicato dos profissionais de teatro.”
O que a gente se esquece, o Google nos lembra.
Risonhas Saudações Rubro-Negras.
Nota: livro de cabaceira ficou muito engraçado.
Carlos, Eugênia, amalucada não sei, muito talentosa e uma das precursoras do tão badalado feminismo atual.
Não gosto de comparar as atuações dentro e fora de campo das outras equipes com a do Flamengo. É inegável que o time precisa, e pode jogar mais do que está jogando. Mas se a Chapecoense se entrega mais, se o técnico do Botafogo comemora mais, se a torcida do Fluminense canta mais, isso é mérito e problema deles.
Se preocupe com o Flamengo, dane-se as conquistas e os méritos dos outros. Essa dor de cotovelo pós-eliminação normalmente aparece em outras agremiações esportivas do Rio de Janeiro.
SRN.
Cicatrizes que ao logo da vida vamos colecionando.
Mas os momentos felizes, muito felizes e hiper felizes que tivemos também com nosso querido Flamengo, estes deixam nossos corações e almas pintados de preto e vermelho.
Por isso somos Flamengo até morrer.
Por isso gritamos ao mundo que ” Isto aqui é Flamengo !!!!! ”
Ótimo texto Marcelo Dunlop .
Altíssimo nível. O texto.
O time, falta um longo caminho pra chegar pelo menos num nível aceitável.
Vi Chape e Cruzeiro ontem pela Copa do Brasil. Impressionante a entrega dos jogadores da Chape. A conexão, como dito no texto, entre torcida, time, estádio. Ontem não deu pra Chape, porque o esporte tem dessas coisas, mas nenhum torcedor saiu do estádio podendo reclamar de falta de entrega. Não lembro de ter visto isso no Flamengo nos últimos muitos anos.
Exato, Rocha, e é isso que mata o torcedor do Flamengo atual, também vi o jogo, e morri de inveja, nem pensar o Flamengo correr a metade do que correu e se doou o Chape.
Ótimo texto! Pelo que se viu contra os Atléticos Goianiense e Paranaense, as lições (ainda) não foram aprendidas. SRN!
Já que Borges é citado, vou citar um dos nossos: Álvaro Moreira que escreveu um livro de memórias antológico, “As amargas não”. Pois em se tratando do Flamengo já há séculos que é impossível seguir as recomendações do grande escritor, aliás, pai de um excelente cronista esportivo, pena que bostafoguense, Sandro Moreira. Não sei se é minha neurose cronica, mas só vejo amargas na linha desse meu time e assim vou caminhando, aos trancos e barrancos esse leite derramado que nunca deixa de ser azedo. Armário rápido.
bom texto….
o que me fez pensar o que seria se fosse escrito pelo nosso grão-mestre Arthur mulhemhberg(ah saudades do grande escriba)
posso imaginar o tamanho da frustração diante do colapso,da tragédia que se tornou essse jogo.
coisa passada que não vale nem a pena comentar….volte num dia mais feliz.
SRN !!!