Sempre encaro como uma façanha o ato de cruzar o tormentoso cabo das oitavas da Taça Libertadores, etapa que os antigos flamengos chamam de Fase da Boa Esperança. Mas creio que uns amigos se excederam, o que passei a suspeitar quando os ouvi cantando, numa subversão do hino de Neguinho da Beija-Flor. A melodia era:

“Domingo…
Vou correr pela manhã
Traçar um tortelete e um marzipan…”

O negócio começara na noite de quarta, 20 de agosto. Um no vinho, outro na cevada numa temperatura justa, nem gélida a ponto de ferir a mão, nem morna a ponto de afrontar o gogó. O jogo entre Internacional x Flamengo parecia sob controle, mas como se sabe, a Libertadores é traiçoeira.

Um jogo no Beira-Rio é sempre cercado pelas brumas da expectativa, e bastava um passo em falso, uma bola na mão, um gol de ex-rubro-negro, para a partida desandar.

Foi quando o Carlos (chamemos o torcedor número um de Carlos) ergueu-se da cadeirinha de plástico e bradou:

– Mano. Se o Flamengo avançar, eu vou correr daqui à padaria do Arrasca.

Até o locutor da TV se calou. Na Laje da dona Maria, onde nos reunimos para as porfias decisivas, abriu-se uma clareira de espanto.

Aos poucos, começou-se a quebrar o silêncio. Padaria? Arrasca? Fica dentro do clube? Ou no CT? É aquela perto do Chico’s, no Maraca?

O Carlos (chamemos de Carlos) teve paciência e começou a explicar. Mas gente, que ignorância. Vocês não sabiam? Nosso dez é sócio desde 2023 de uma padaria finíssima, chamada Rio Sucrée. É ali na Avenida das Américas número 3 mil e…

Goooool! Arrasca! Aos 27 da primeira etapa, com um tapa doce como suas guloseimas, o uruguaio deixou o dele, arrancando suspiros e alimentando os sonhos da rapeize.

O Carlos se ouriçou com o sinal divino:

– Fechado. No domingo vou até lá, mandar um doce de leite uruguaio. Quem vai comigo?

Assobios. Carinhos na cadela Pina. Fugas ao banheiro. E não se falou mais nisso. Até porque as jogadas fluíam, e tudo acabou dando certo, naquele histórico “jogo do papel picado”: 0 x 2, gols de Arrasca e Pedro, no finzinho, fora dois tentos do BH milemetricamente anulados.

Chegou o domingo, nove da matina. E o Carlos, focadão na promessa, descolou um parceiro, o Léo (chamemos o torcedor dois de Léo).

– Vi aqui, são 17 quilômetros daqui de Ipanema até lá. Bora?

– Bora. Mas esse “lá” é onde mesmo? Ah tá. A padaria do Arrasca.

E deram a largada. Leblon, alegria, Vidiga. Praia de São Conrado.

Na ciclovia da Barra, altura do Barramares, uma visão abençoada: de boné, maestro Leovegildo Junior papeava no quiosque com alguns parceiros. Faltava pouco.

Com uns dez quilômetros de corrida, o Léo emparelhou com o pagador de promessa. Cara meio fechada, sondou:

– Tava pra te perguntar. (Puf, puf) Vai estar aberta essa porra, né?

Claro, confirmado. E seguiram.

Quando cravaram 15 quilômetros, viram uma banca de água de coco, e pararam para o merecido néctar. Nada se parece com uma água de coco gelada após 15 quilômetros, salvo celebrar uma taça após 38 anos sem conquistá-la.

Após mais uns dois quilômetros de trote, foram se aproximando da confeitaria. Ali pelas 10h20, só família, clima sereno. E aqueles dois flamengos de roupa empapada, procurando fotos do Arrasca nas paredes. Ué, nem uma bandeirinha do Mengo? Nada.

O Léo pediu um salgado, um suculento folheado com presunto. O Carlos quis homenagear o craque e seu gol decisivo: pediu uma bomba. Uma nutritiva bomba de chocolate, que estufou seu estômago como se fosse o filó do Beira-Rio.

– Bora chamar o Uber? Preciso tirar uma nonoquinha para me recuperar.

Meu bom Arrasca, parabéns pelo estabelecimento. E perdoe essa dupla de amáveis clientes, esforçados e esbaforidos, que entraram aí pingando, um deles de meias, o outro falando de exame de próstata. tudo apenas para pagar essa promessa-lanche, em louvor ao seu talento e ao élan uruguaio. Esqueceram até de me trazer um doce de leche.

Se o escrete avançar para a semifinal, eles prometem não repetir a façanha, ou talvez perturbar outro astro do elenco. O Saúl não vai abrir um self-service vegano, não?