Estamos em 2025 depois de Cristo, no 130º ano da história do Flamengo. Todas as taças e glórias terrenas foram conquistadas pelo clube. Todas? Não! Uma pequena e teimosa parcela da mídia, povoada por irredutíveis comentaristas, resiste ainda numa seara específica. Para essa aldeia de teimosos invocados, o Flamengo pode ser o time vencedor que é, campeão de tudo, mas num aspecto o Rubro-Negro da Gávea é, no máximo, segundo colocado.

“No mundo do samba, não tem para ninguém. Só dá Vasco”, garantem tais pitaqueiros, e listam de fato uma galeria de músicos e bambas lendários: Martinho da Vila, Clementina de Jesus, Nelson Cavaquinho, Paulinho da Viola, Zé Keti, Aracy de Almeida, José Jamelão, Nei Lopes, Aldir Blanc etc.

Uma lista imbatível, certo? Até o ano passado, talvez. É que ainda não havia entrado em campo outro craque da música. Seu nome? Paulo Tinoco. Se ele canta ou toca instrumentos eu desconheço, mas é um senhor pesquisador. Para se ter uma ideia, o escritor Mauricio Neves de Jesus, mais célebre historiador flamengo vivo, tira dúvidas com ele. Generoso, Paulo Tinoco está para lançar um livro com diversas descobertas, onde ele lista mais de 1.530 canções sobre o Clube de Regatas do Flamengo, desde a primeira ópera nos anos 1890. Somente músicas sobre o Zico ele enumerou 121, o maníaco.

Qual foi o primeiro samba-enredo sobre o Mengão? Ele sabe: Arrastão de Cascadura, 1974 (há 50 anos, alô povo que curte uma reedição). Qual a música rubro-negra mais regravada? Está lá também. O Ruy Castro, o primeiro a folhear o volume 1, leu arrepiado: “Sonhava com esse livro há 20 anos”.

As fotos e partituras são espetaculares, boa parte inédita em livros. Não bastasse, ainda contém informações como esta, que o Paulo me contou, naquela tarde inesquecível na livraria Folha Seca. “O Noel era flamengo desde criança, isso está cristalino na primeira biografia escrita sobre ele, em 1955. Mas depois aquela passagem passou a ser ignorada”.

Salivei. Comecei, cabeça fraca e fértil que possuo, a imaginar o mancebo Noel, ali pelos seus 16 anos, a galgar as frágeis arquibancadas da época. Que partida o jovem poeta escolheria? Moleza. Flamengo de vermelho e preto em campo, julho de 1927, contra um brioso anfitrião. Local: o campo do Jardim Zoológico da Vila.

O time entrou em campo, para espanto das girafas e pavões ao redor, com o goleirão Amado, Roseira, Hermínio; Benevenuto, Flávio Costa e Japonês; Cristolino, Vadinho, Frederico, Fragoso e Agenor. Fim de papo: Flamengo 4 x 2 Vila Isabel, gols de Frederico, Vadinho, Benevenuto e Roseira. O arisco Alô fez os dois do Vila, um em cada tempo.

Corri para casa, parei de delirar e mandei vir o livro, encontrado no grande Sebo do Messias, livreiro falecido há pouco. A biografia é escrita por Jacy Pacheco, seu primo bancário, poeta e pianista que vivia em Campos dos Goytacazes e depois morou em Niterói com Hélio Rosa, irmão do genial sambista. Jacy, por sinal, era alvinegro, portanto uma fonte acima de suspeitas. E, de fato, lá está, na página 50:

“Cultor do futebol de mesa, Noel tinha um bom time de botões. Disputava campeonatos com os meninos de Vila Isabel, sob o olhar tolerante dos pais e os protestos do irmão Hélio, que achava o brinquedo de mau gosto. Como apreciasse, logicamente, o verdadeiro futebol, um dia Noel me perguntou por que eu torcia para o Botafogo e não para o Flamengo, que era o seu clube.
– Comigo é preto no branco, primo – foi a minha saída.
Noel Rosa era mengo. E Alvaro Moreyra já disse que o futebol no Brasil é uma segunda natureza…”

É, meus amigos, já dá para escalar um escrete e tanto com os sambistas flamengos, com um ataque profetizado num belo LP de João Nogueira. Deixa que eu escalo:

Ary Barroso, Dorival, Ataulpho e Guineto;

Carmen Miranda, Silas do Império, Bezerra e Candeia;

Wilson, Geraldo & Noel – o Galinho da Vila.

Vão encarar agora? Chora, cavaco!

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