Se dependessem apenas dos mãos-grande que organizam o seu modesto campeonato rural os torcedores cariocas correriam mais riscos de dar uma cafungada involuntária num gás de pimenta oferecido pelos promoters da Briosa do que de sentirem qualquer emoção provocada por algum resultado inusitado nos embates travados em suas oceânicas 15 rodadas.
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A inexorável previsibilidade de uma competição viciada, praticamente de cartas marcadas, só pode ser perturbada graças às forças imateriais, impalpáveis e não monetizáveis dos seus participantes. É nas tramas das camisas, e somente nelas, que ainda refulge a fagulha capaz de incendiar o coração dos anestesiados, dos incautos e dos distraídos. Elencos, estruturas e orçamentos deixam de exercer sua avassaladora pressão lógica quando as camisas, e os entes resfolegando por dentro dela, assumem o controle da narrativa e contam suas próprias histórias.
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Vejam esse Botafogo x Flamengo pela oitava rodada do Carioca. Jogo sem maiores atrativos cujo resultado, fosse qual fosse, não alteraria em sequer um milímetro a distância que hoje separa o Flamengo do seu adversário. Mesmo o Botafogo cumprindo um papel fundamental na sociedade carioca como uma importante estação de transferência entre as Linhas 1 e 2 do metrô.
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O Flamengo, como sempre, entra em jogos com o alvinegro premido pela obrigação da vitória e até mesmo constrangido ante ameaças de seus próprios torcedores. Como “Se for menos de 3 x 0 nem comemoro!” ou “Se não ganhar desses caras faço questão de pagar o Uber do Paulo Sousa pro Galeão.”, entre outras imprecações eivadas de soberba, arrogância e autossuficiência justificadas.
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Já o Botafogo, cuja mais recente vitória sobre o Flamengo já completou 1202 dias, vai ao encontro do Flamengo vestindo a diáfana túnica dos azarões e sabedor que o Flamengo é o papaizão que está em outro patamar, o que vier é lucro e tá tudo certo. E esse roteiro vem se repetindo por anos a fio sem nenhuma alteração significativa. Claro que fica chato, até pro mais muquirana dos flamenguistas.
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Mas eis que de onde menos se esperava que saísse alguma coisa — a bissexta e esquisitona torcida botafoguense — surge uma nova abordagem ao chamado Clássico da Rivalidade. Com os miolos cheios de ideias liberais e uma crença inabalável nos poderes vingadores da Mão Invisível do Mercado, os alvinegros se propuseram a enfrentar o Flamengo não mais como o primo pobre de Marechal Hermes, mas como se fossem novos milionários de startup, potencialmente muito ricos, ainda que sofrendo com um problema temporário de liquidez antes da IPO.
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Essa radical mudança de postura da torcida menor foi suficiente para alterar a dinâmica do clássico. O Botafogo x Flamengo #341 não foi mais uma covardia do Flamengo Malvadão e Açambarcador contra o hipossuficiente alvinegro de Soldado Severiano. Dessa vez, ao menos para os botafoguenses, o jogo seria o clássico centenário entre duas potências econômicas quase do mesmo tamanho cuja única diferença era o cash-flow. Estreando seu novo mindset, os alvinegros foram a campo pra jogar um jogo entre ricos para dar alegria e sentido à vida dos pobres.
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Infelizmente, o bárbaro esporte bretão ainda guarda muito do seu primitivismo original, não sendo capaz de reagir de imediato aos novos modelos econômicos propostos pelos seus participantes. Mesmo autopromovido a rico o Botafogo novamente se fudeu na mão do Flamengo, do mesmo jeito ao qual a comunidade esportiva nacional se habituou nos últimos 40 anos. 3×0 fora o baile.
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Nas tribunas do Vazião estava o Pigmalião do Botafogo. Que não deu muita importância à partida, preferiu ficar arroizando uma mina de minissaia no camarote. Teve botafoguense reclamando pela desatenção. Mas talvez Textor quisesse apenas seguir à risca o conselho de Jane Austen em seu primeiro livro: “É uma verdade universalmente reconhecida que um homem solteiro, de posse de boa fortuna, deve estar atrás de uma esposa.”
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Orgulho e Preconceito à parte, rubro-negros aprovaram esse Botafogo rico. Que se mostrou liberal na economia, mas conservador nos costumes. Manteve o costume de apanhar do Flamengo e sair de campo chorando. Se o dinheiro injetado na SAF for capaz de elevar a autoestima do torcedor e ainda preservar a essência e as características distintivas de cada clube como parece estar fazendo com o Botafogo, é um modelo condenado ao sucesso.
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É claro que como todo empreendimento econômico surgirão competidores ferozes que não estarão dispostos a renunciar às suas posições no mercado. Competidores como Giorgian De Arrascaeta, por exemplo, que demonstra a cada partida que vai perturbar geral e botar na roda quem aparecer pela sua frente. Ou como Gabriel Barbosa, perfurador contumaz das redes do Foguinho e paixão mal resolvida de Joel Carli, que manteve a velha mania de deixar ao menos um côco na rede de Gatito.
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E ainda teve Pedro, enfim efetivado no comando do ataque e dando provas que voltou a fazer as pazes com as redes, e o ressuscitado menino Lázaro, que a cada dia comprova que estava apenas se fingindo de morto no Brasileiro 2021. O Lázaro é daqueles jogadores que quando jogam bem dá até tristeza. Ninguém precisa assinar o Wall Street Journal pra saber que se ele continuar nessa ascendente não escapará do poder de sucção da próxima janela europeia.
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Infelizmente o futebol business é assim e o modelo de negócios do Flamengo se baseia na venda de gemas de alto valor ainda não totalmente lapidadas para o mercado europeu. O que nos leva a refletir sobre os pés de barro do deus Mercado, cuja crença no liberalismo obriga o Flamengo a praticar um mercantilismo anacrônico exportando matérias primas para a metrópole e importando estas mesmas matérias primas anos depois com algum valor agregado e preço decuplicado.
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Os neoliberais, principalmente os das cepas mais recentes, apreciam muito as citações de Adam Smith do A Riqueza das Nações, de 1776 (um ano depois do nascimento de Austen), principalmente aquela parte de não apelar pra bondade do açougueiro e do cervejeiro, mas sim para a consideração do carniceiro pelos seus próprios interesses. Mas é bastante raro que citem a obra anterior de Smith, A Teoria dos Sentimentos Morais, de 1759, onde o escocês discorre com grande propriedade sobre a simpatia.
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Em sua Seção 1, O Senso de Conveniência, na tradução de Lya Luft, o livro abre com “Por mais egoísta que se suponha o homem, evidentemente há alguns princípios em sua natureza que o fazem interessar-se pela sorte dos outros, e considerar a felicidade deles necessária para si mesmo, embora nada extraia disso que não o prazer de assistir a ela.”
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O torcedor do Flamengo, mesmo aquele que combate o liberalismo, há de concordar que assistir à felicidade dos botafoguenses pela sua entrada no universo dos ricos, só há de nos trazer vantagens, no curto, no médio e no longo prazo. Para os rubro-negros o jogo de ontem diz muito pouco, o Carioca é pré-temporada e nem se empolgar é permitido. Mas foi uma amostra de que mesmo com dinheiro o Botafogo vai continuar a ser nosso freguês. Agradecemos a preferência, voltem sempre.
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Mengão Sempre
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E não dá pra deixar de comentar a foto e sua relação com o título do texto. Genial.
“Estreando seu novo midnset” foi sensacional! Hahahahahahaha. Já não podemos dizer que o carioca não rendeu nada, pois rendeu esse texto.
Mas confesso que gostaria de comemorar um inédito tetra. É muito errado?
Poxa que jogo. 2×2 contra qq um. E no sufuco.
Mas tem as suas coisas boas.
1) Diego Alves. Deve ter sido seu ultimo jogo. Espalmou pra frente como o Neneca, o qual foi atacado por isso.
Sai como um louco, nao defende nada, nao tem nervos, nem no minuto 95 (veja o ultimo lançe do jogo).
Enfim – ja deu. Melhor, ja levou frangos demais. Agora chega até pra portuga.
2) Idoso. Nao da mais pra escrever que levou bolas nas costas sem fim. Nao leva mais. Nao porque se posiciona melhor, mas simplesmente por nao estar mais la na defesa. Ele vaga pelo campo inteiro sem fazer absolutamente nada que preste. Hoje em dia nem bancar defensor ele banca.
Ja deu. Ja irritou demais esse cara que nos custou a liberta.
Agora. Quando mais agua vai Reno abaixo, pior ficam as coisas em geral. O PS aqui em Basel tb vivia nessa de escalar todo mundo em qq lugar – e era criticado sem fim por isso. Tumuitua, meu amigo, vc somente tumultua. Nao sai quase nada de bom dsso.
Quando é pra jogar forte – ele coloca o time que conhecemos. Quando é jogo normal, ficar trocando até os penteados dos jogadores.
A implicancia com Pedro nao é mais aceitavel. Num dia que o Gabi (nome de mulher) nao jogava quase nada, pq nao tira ele? Ja esta com medinho de fazer isso? O BH era zero, tb.
O Pedro tem que ter mais tempo de jogo.
Essa de em cada comentario dizer que esse ou aquele nao é bom suficientemente, como fez com Marinho, é pura sacanagem. Nao mostra um homem respeituoso. Acho sim que ele deveria defender todos os jogadores – para fora. Em casa, ai é outra conversa.
Ontem falou do carnaval.
Ahhh, meu …. ta enchendo.
O time, qq um deles que ele monta, nao sabe jogar compactado. Ele viva falando que quer o time atacando na frente. Mas parece que nao sabe passar como se faz isso. Ontem vi o Zurique jogar contra o Basel. Eles sim marcaram pressao. Durante 45 minutos o Basel quase nao saia do campo deles. Eh assim que se faz. Como em 19 faziamos. Nao é dificil. Nao entendo pq isso nao funciona.
A defesa melhorou um pouco com o novo.
Jah o Davi deveria jogar e nao ficar apontando para onde os outros deveriam se posicionar – coisa extremamente irritiante, até pra mim assistir.
Quem subiu muito de produçao foi o Gomes e o Rodinei.
Arrasca esta um pouco gordim . Ele casou? …
Nao sei o que dizer do PS. Espero que isso de certo. Ta 50 x 50.
SRN
Ontem eu tive uma sensação estranha, não sei de desalento, pena, depressão. O momento foi no primeiro gol do Resende, ver o Diego Alves se debatendo qual um menino que nunca viu bola na vida e fica sem saber o que fazer quando ela, a bola, foge dele, esse o lado nostálgico. O trágico: a imagem de um afogado nos seus últimos estertores. Deprimente a cena. A vida não perdoa.
Aqui não posso deixar de registrar.
O Botafogo teve sim seus momentos de glória, tanto que obteve vários títulos cariocas à época que o nosso campeonato se equivalia ao Brasileirão, para melhor.
Como não sou botafoguense, não sei registrar os anos, mas, salvo engano, em 87 e 88 foi um campeão brilhante, coberto de glórias, pelo excelente time que possuia.
Isto sem mencionar que, no final da década de 50, era o grande rival do Santos, que possuia o melhor time que o Brasil conheceu, indo até 63.
Não me deixo dominar pelo fanatismo, motivo pelo qual afirmo categoricamente que o Santos bi-campeão do mundo foi o melhor time brasileiro de todos os tempos.
Gilmar (que tristeza as últimas notícias); Lima, Mauro, Calvet e Dalmo; Zito e Mengálvio; Dorval, Coutinho, Pelé e Pepe.
Insuperável através dos tempos.
Claro que o Botafogo, batendo contra essa potência, nãoo ganhou os títulos que poderia, contra qualquer outra equipe.
Por outro lado, não se pode esquecer a Seleção Brasileira campeã mundial em 58, com a presença mais do que destacada de Nilton Santos, Didi e Garrincha.
Devagar com a louça, minha gente.
O mundo não teve apenas dois anos, o de 81 e o de 2019.
Tenho pena dos botafoguenses atuais, especialmente os mais velhos, que se acostumaram a GLÓRIAS e têm que torcer para a mediocridade que se vê em campo.
Saudosas SRN
FLAMENGO SEMPRE
Gostei da colocaçao. Assim esta tudo em dia.
Abraço RN
Arthur, meu comunista favorito, sua crítica ao liberalismo é sempre brilhante.
É legal criticar o capitalismo e desfrutar dele morando muito bem no Rio de Janeiro e trabalhando numa empresa altamente capitalista. Se fossemos pertencentes a um país de doutrina soviética, jamais teríamos um time endinheirado como o Fla ou até mesmo a ascensão do Foguinho de merda. Com o comunismo, nosso pacote de Internet seria tão bom quanto Joel Carli na zaga, ou Lúcio Flávio como técnico.
E o chororô do Botafogo chega a ser deprimente. Uma torcida patética, apática, conformada, e ao mesmo tempo apoiada em glórias(quais?) Do passado. Ridículos. Espero que melhorem e façam bons times. Não aguento mais. Nos últimos tempos, vencer o Botinha tem sido tão difícil quanto vencer o Itaperuna.
Falou pouco, mas em compensação falou besteira pra caralho.
Encontrando enorme dificuldade para ler, me encontro sempre com o Arthur no A Voz do Torcedor, no GE.globo.com e agora no Facebook.
Mas esse Campeonato Carioca é tão ruim, quanto o gás de pimenta que se vende nos morros do Rio de Janeiro. Só dá onda mesmo nos malucos. (risos)
SRN!
Alvíssaras! Bom ter seus textos de volta, Arthur.
Endosso todos os comentários (4) que pude ler.
Mais do que tudo, importante mesmo é a volta do RPA, ontem com um brilhante comentário do Dunlop, hoje com a gozação de sempre do Grão Mestre, escudado por uma cultura que me impressiona.
Quanto ao jogo, tudo dentro da mais absoluta normalidade.
Vitoriosas SRN
FLAMENGO SEMPRE
Dessa vez sobrou até pra Jane Austen! Hahahahah genial
O blog finalmente voltou à ativa, aleluia! Afinal, ano pouco profícuo em textos = ano sem conquistas relevantes em campo (vide 2021). Aliás, o que aconteceu com o seu twitter antigo, Arhtur?
Foguim, chorão est ….
Que saudade! Bom te ler de novo!