Está para completar cem anos, mas parece que foi há uns 99.
A torcida flamenga já era capaz de encher arquibancadas, promover algazarra nas ruas, buzinar nas vitórias, como o cronista João do Rio registrou em “A hora do football”, magnífico texto sobre um Flamengo x Fluminense do dia 13 de maio de 1916 – um jogo tão antigo que ninguém ainda chamava de Fla-Flu.
Mesmo assim, ainda não éramos uma Nação. Se tanto, um animado grupo que se comprazia em vestir rubro-negro e esborniar nas vitórias – num tempo em que ainda se comprazia e esborniava. Longe de mim desancar nossos pioneiros, mas a turma que zanzava peladona nas cercanias da praia do Flamengo mal começara se levar a sério. Prova disso é que não ostentava, ainda, os símbolos que identificam uma nação.
Cores OK, bandeira OK, povo e heróis estavam OK. Mas faltava um cântico de louvor às nossas glórias, nossos atletas e nossos pavilhões. Faltava o hino.
Em 1920, ele foi composto. E cantado, gravado, orquestrado e eternizado. Imagino os rubro-negros da época, encontrando-se no bar Madrid ou no Galeto Sat’s de antanhos, trocando tapões nos ombros e chacoalhando-se pelas orelhas:
– Tu viu? Já temos um hino! Somos Nação, porra!
– Irado, mas não fique perto. Ainda tou cagado de pegar a gripe espanhola…
O compositor de nosso primeiro canto, autor de letra e música, é um daqueles imensos heróis do panteão rubro-negro, um ex-goleiro chamado Paulo Magalhães, uma espécie de Rafinha na época, que também devia esbanjar no banjo e adorar uma modinha de viola. Além de guarda-metas, por sinal, Magalhães era ainda pivô do time rubro-negro e ainda jogava hóquei pelo Flamengo.
O dia em que a massa flamenga, amorfa, sem norte e sem direção, tornou-se a Nação Rubro-Negra, foi uma tarde mágica de domingo. Na folhinha do calendário: 14 de novembro de 1920.
Magalhães, tal qual um maestro, empunhou sua batuta imaginária, reuniu o elenco principal no vestiário do estádio da rua Paissandu, pigarreou, e mandou ver. E então, talvez sem se darem conta, talvez trocando parte da letra, aqueles homens de bigode e brilhantina fizeram história – o arqueiro Kuntz, Burgos, Telefone, Rodrigo, Japonês, Dino, Carregal, Candiota, Sisson, Sidney Pullen, Junqueira – quando soltaram o gogó:
– Flamengo, Flamengo
Tua glória é lutar!
Flamengo, Flamengo
Campeão de terra e mar! (bis)
E prosseguiram, os ídolos:
Saudemos todos
Com muito ardor
O pavilhão do nosso amor
Preto encarnado
Idolatrado
Dois mil campeões do vencedor
(refrão)
Lutemos sempre com valor infindo
Ardentemente
Com denodo e fé
Que o futuro ainda será mais lindo
Que o teu presente
Que tão lindo é!
A cantoria deu-se antes de um Flamengo x Palmeiras de São Cristóvão, e claramente a comoção pelo momento prejudicou os jogadores, que apenas empataram em 1 a 1, gol do cracaço inglês Pullen – por sinal, o gol de número 500 do clube.
Sim, o estrago estava feito, e as consequências o leitor conhece: o Flamengo não apenas seria campeão carioca naquele ano como, pouco depois, empurrado pela força daquela melodia, conquistaria o estado, o país e o mundo – e o Palmeiras, apavorado, iria fugir para outra cidade, ganindo e tremendo feito vara verde.
Foi o primeiro caneco erguido pela nação flamenga, em pontos corridos e de forma invicta – uma conquista enfim cantada a plenos pulmões.
Mais de vinte anos depois, claro, a vocação para a festa e a folia fez a nação flamenga se enrabichar por outra cantiga deliciosa, a “Marcha da Torcida Rubro-Negra” de Lamartine Babo, mas essa depois eu conto.
O que nos interessa, especialmente nos dias de hoje, é lembrar que nenhum irmão flamengo ou amiga flamenga jamais deverá se sentir só, abandonado ou desacolhido. E, quando isso ocorrer, abramos o peito, limpemos a garganta e, nos imaginando dentro daquele vestiário que não existe mais, com aqueles craques maravilhosos (“Mais alto, Carregal! Entre no tom, Telefone!”), entoemos, ombro a ombro com o imenso Paulo Magalhães:
Lutemos sempre com valor infindo
Ardentemente
Com denodo e fé
Que o futuro ainda será mais lindo
Que o teu presente
Que tão lindo é!
Amém.
Dias atrás acabei de ler o livro do Ruy Castro ” O Vermelho e o Negro”.
Antes tinha lido os dois últimos do Arthur e agora fica faltando o do Murtinho e da Nivinha “Festa na Favela”, que será o próximo.
Se os do Arthur me fizeram rir e comparar os nossos sofrimentos com a fase ” Abel – Perdemos mas foi lindo ” e a sensação de que o jogo estava virando pro nosso lado e que íamos ganhar a porra toda, como acabou acontecendo, o do Ruy Castro me fez conhecer detalhes da nossa rica, riquíssima História que eu jamais tinha ouvido falar.
Sensacional !
Na verdade somos 42 milhões na Nação e temos sim folego pra consumir tudo que nos diz respeito.
SRN
Brilhante…. Esse cara é bom!!!