Fiz no Maracanã somente uma prova escrita. Com a pranchetinha na mão e as leis do Detran na cabeça, sentei na cadeira azul em 1997 e mandei ver. Passei bonito (errei só a pergunta do extintor). De todo modo, considero até hoje o estádio de futebol como a maior universidade que frequentei.
Nesta data festiva para o portal República Paz & Amor, cinco anos de sua fundação numa mesa de bar na Gávea, acordei nostálgico, com vontade de fazer aquele retrospecto, ainda mais que não tem ninguém em casa.
A seguir, portanto, recordo as principais lições de vida que aprendi na universidade Mário Filho, de 1988 até hoje.
1. Anatomia
Aos 10 anos, com meu pai, meu irmão e mais 14.635 torcedores, debutei no Maracanã, naquele Flamengo 1 x 1 Palmeiras do Gaúcho, em que o centroavante pegou dois pênaltis. Abismado com aquele verde reluzente, que em nada lembrava o gramado da Gávea, mal reparei no Zico. Na volta, conversamos sobre o flanelinha que cuidou do nosso corcel preto: “Mesmo sem metade da orelha ele parece feliz. Deve ser bom trabalhar perto do Maracanã né, paiê?”. Viramos clientes do Orelha até ele sumir.
2. História
Armando Nogueira dizia que a maior magia do Maracanã era a de reviver a purificação coletiva que os gregos antigos iam buscar no teatro. Já naquela estreia, fomos purificados por um copão plástico escrito Brahma Chopp cheio de mijo. A moda de purificar os colegas de arquiba, por sinal, está voltando. Agora são copos e mais copos voando a cada gol do Flamengo, só que com cerveja. Ou seja, uma evolução. Prevejo, se a economia melhorar, banhos de uísque escocês legítimo ou perfume Chanel nº 5. Enquanto aguardamos, melhor usarmos capa de chuva.
3. Alegorias e adereços
O Flamengo da nossa estreia tinha Zé Carlos, Xande (Renato), Aldair, Darío Pereyra e Leonardo; Delacir, Aílton e Zico; Sérgio Araújo, Zinho e Bebeto (autor do gol). No banco, Telê! O Palmeiras de Ênio Andrade teve Zetti, Zanata, Toninho, Heraldo e Denys; Lino (Amauri), Gérson Caçapa e Bandeira; Tato, Sílvio (Gaúcho) e Mauro (autor do gol). Além do gol de Bebeto e da cobrança mal batida do Zinho, a cena mais marcante em todo jogo foi a de um torcedor palmeirense com seu bandeirão. Ele pegou o mastro, um enorme bambu, e partiu para cima de um bando de torcedor rubro-negro. Epa, aquilo não passava na TV! Percebi que eu precisaria retornar ao estádio outras vezes para entender mais sobre futebol.
4. Sexo
Na porta do estádio, vi meu pai conversando animadamente com um grandão simpático que eu nunca tinha visto. Como esse cara é amigo do meu pai, se nunca foi lá em casa? Me aproximei curioso e o fera me cutucou: “E aí garoto! Já toca uma punhetinha?”
5. Aritmética
Num dia de Flamengo x Vasco, meu camarada Léo Tijolo cruzou a rua São Francisco Xavier e deu de cara com um batalhão vindo de São Januário, a pular e entoar brados de guerra. Ao vê-lo bem vestido de vermelho e preto, um dos cerca de 50 vascaínos desgarrou e acertou-lhe uma bomba na boca do estômago. “Pensou em reagir?”, perguntei. A resposta, a jato: “Não, eu sei contar”.
6. MPB
Essa aconteceu do outro lado do Maracanã, com um baixinho chamado Tamagochi. Estava ele e outro louco indo para o Fla-Flu quando viram uma turba de torcedores organizados do Fluminense. Olharam-se rápido: tatuagens escondidas, camisas brancas, era melhor disfarçar que correr. Mas o olhar temeroso os entregou, e foram cercados: “Se não cantarem o hino do Fluzão, vão apanhar!”. Encheram os pulmões e lascaram o refrão de Lamartine Babo, única parte que sabiam, e emendaram com “É isso, Fluzão, porra, vamos ganhar!” E saíram pulando e abraçando os rivais, escapando por pouco.
7. Comunicação
Nenhuma aula teórica de publicidade e propaganda sobre público-alvo foi tão eficiente quanto a que tive ali pelo Bellini. Era final do Estadual, e o Flamengo contratou um trio elétrico para animar a torcida na porta do estádio. Estava passando com o Rafael Werneck quando o cantor conclamou a massa e soltou a voz, no microfone, em paródia da canção “Banana Boat”, de Harry Belafonte: “Vamos lá, todo mundo comigo: Nada mais gostoso / que cair da arquibancada…” Voaram umas 700 latinhas no fera, que implorou quase às lágrimas para o piloto do trio ligar o motor e pisar fundo no acelerador.
8. Corrupção
O saudoso Bussunda foi meu vizinho de porta, no Leblon, e adorava falar de futebol – abria o sorriso, ficava simpático, queria saber tudo o que a gente tinha visto das arquibancadas. Ele próprio começou a ir ao Maracanã adolescente, nos anos 1970, quando a grana era curta, junto com amigos como o Claudio Manoel. Para irem na arquibancada, eles pagavam a entrada na geral e batiam numa grande porta de metal, onde ficava um fiscal que os deixava subir por um punhado de moedas, uns dez reais para a época. Eles batiam na porta e ficavam chamando o cara: “Seu Suborno! Seu Suboooorno! Estamos aqui, Seu Suborno!”
9. Fotografia
Um dia qualquer de 2007, decidi fazer meu primeiro cartaz como geraldino. Chamei meu irmão e uns amigos e pedi para o pai, dono de boa caligrafia, escrever no papelão: “Romário: Troca seu Porsche pelo meu Gol 1000?” Um dos jogos mais engraçados que já fomos. O pessoal nos pagava cerveja, e tiramos tantas fotos com o povaréu que a dona Zica já estava com ciúmes. Lá pelas tantas, um jovem fotógrafo do gramado, cabeludinho, pediu para posarmos com o cartaz. Olhei para aquele garoto e falei: “Isso é fotógrafo de blog, não vai sair em lugar nenhum”. A foto viralizou e foi parar no KibeLoco.com.br. Todo mundo aparece rindo na foto, um dos primeiros grandes memes da internet, menos eu.
10. Superação
O jogador que mais vaiei no Maracanã, quando eu ainda vaiava, estava naquela estreia em 1988 – o volante Delacir. Anos depois soube que Delacir se tornara o melhor formador de jovens jogadores no centro esportivo do Zico, tremendo braço-direito do Galo e funcionário dos mais queridos. Quer dizer, o cara aprendeu com minhas vaias, e nem agradeceu, pô!
11. Justiça
Na saída de um Fla-Flu, demos de cara com dois torcedores se engalfinhando, ambos segurando a mesma camisa do Flamengo. Um policial montado se atirou e puxou o Manto. “O que está acontecendo nessa porra?”. Ele me roubou, a camisa é minha! Eu não, foi ele, e ficou aquele trelelê. O guarda espiou a camisa e perguntou a um deles: “Qual é o número?” “É… sete!”. “É quatro, é quatro!”. O sete, coitado, saiu catando cavaco e tomando coice até o rio Maracanã.
12. Tempo e relatividade
Descobri com os amigos no Maracanã, e com Rubem Braga nas crônicas, que o domingo de futebol é idêntico em qualquer canto do planeta. Existe uma distância moral universal que “é a mesma de Ipanema ao Maracanã — a distância em função do fluir e do fruir de um domingo: almoçar à uma hora, chegar ainda a tempo de ver a maior parte da segunda fase da preliminar, estar em casa de volta ao escurecer.” Grande Rubem, ainda por cima rubro-negro.
13. Artes plásticas
Para mim o monumento mais querido do Rio de Janeiro sempre foi a estátua do capitão Bellini – clássica, bem produzida e ainda por cima conveniente, pois virou o ponto de encontro mais famoso da cidade. Até o dia em que descobri que a cabeça não era do zagueirão – segundo algumas versões, o mecenas da escultura produzida em 1958, fã do cantor Francisco Alves, meteu o corpão do jogador com o rosto do rei da voz. Descobri que o brasileiro é fiel a seus ídolos esportivos – mas do pescoço para baixo.
14. Humores
Um dia de 1997 perdemos feio para o Vasco, num concerto de Edmundo, e meu colega de arquiba Rodrigo Studart protagonizou a maior cena de fúria que já testemunhei: despedaçou em 50 pedacinhos a camisa do Flamengo que usava. Se estivesse frio, picotaria agasalho, camisa, cachecol e engoliria o gorro. Aprendi que a alegria do torcedor sai pelos olhos; a raiva, pela ponta dos dedos.
15. Negociação
Todo carioca, mesmo sem tino algum para finanças, é capaz de ficar mestre em economia ao combinar preços com um flanelinha do Maraca. Uma vez, aliás, paguei 50 reais numa vaga esplêndida ali pela Tijuca. A argumentação do guardador foi irrecusável: pegou a nota e arrancou, batendo o recorde de 400 metros rasos. Ou seja, foi 25 pela vaga e 25 pela exibição atlética, justo.
16. Espiritualidade
Vó Ivette, a rubro-negra mais fanática que conheci, morreu poucos dias antes das finais do Estadual de 2001. Depois de ver a derrota na primeira partida, fui para Mangaratiba com amigos e caguei para ingresso, sem pensar mais no jogo. Um colega de curso na ESPM espantou-se: “Ei, como assim? Seremos campeões, homem de pouca fé!” Chegou o sábado, e eu só pensava no Flamengo, e em vovó. Domingo foi foda. Comecei a acompanhar o jogo na estrada e terminei numa piscina de roupa e tudo. Se eu acho que foi a vó que meteu aquela bola no ângulo? Claro que não, todos sabem que foi o Petkovic. Vovó, tenho fé, só deu aquela atrapalhadinha no Helton para ele não chegar lá.
Lição 17: você sabia a dimensão do jogo quando, na hora de comprar o ingresso físico, que era no mesmo dia do jogo, entrava numa multidão digna de blocos carnavalescos e, com ingresso em mãos, tinha que sair por cima dos que não compraram como se fosse um astro de rock. Já era a primeira vitória do torcedor e sabia que o Maraca iria estar lotado.
#Contorcionismo. Guardo até hoje as marcas dessas partidas!
Para todos aqueles que duvidam que um estádio possui alma, história, tradição etc. A partida de futebol dentro dele é so um brinde.
orlando silva !
tem até uma praça com o nome dele no cachambi.
SRN !
Vou contribuir com mais um cantor. Das antigas.
Vicente Celestino – a voz orgulho do Brasil !
Com exclamação e tudo
SRN
FLAMENGO SEMPRE
Textão, Dun!
Muitas lições, muitas!!
Outra ótima! E o Francisco Carlos, “El Broto”
Meu querido Dunlop, texto do caralho! Mas me permita uma pequena correção: O Chico Alves era “O Rei da Voz”, o “Cantor das Multidões” era o Orlando Silva.
Grande abraço e viva o RPA!
SRN
E Lúcio Alves era o Cantor das Multidinhas.
Pronto, 17 lições agora.
DESTA VEZ, CONCORDO COM A MARIA LUISA !
AINDA BEM.
ALEGRES SRN
FLAMENGO SEMPRE
Bom….rmuito bom !